sexta-feira, 28 de julho de 2017

Do papel ao cartão: fraudes para a venda de vales também se modernizaram

O Correio flagrou três locais especializados na compra ilegal de vales refeição e alimentação, que oferecem opções para o delito

Esquemas modernos de compra ilegal de vales refeição e alimentação atuam no Distrito Federal. Em troca de uma porcentagem do crédito, é possível optar por deixar o cartão e a senha no estabelecimento para receber o dinheiro mensalmente ou debitar o valor inteiro no ato e pegar a quantia integral. A prática é considerada crime para quem compra e quem vende. O Correio flagrou três pontos especializados na fraude. Um deles, em Águas Claras, opera dentro de um hipermercado, onde uma loja de roupas de praia serve como disfarce para a atividade. Outras duas ficam a cerca de 600m de distância uma da outra, em um dos locais de maior movimentação de Brasília, o Setor Comercial Sul. 

Na loja de roupas de praia, em Águas Claras, a atendente sabe diferenciar os clientes que buscam vestuário daqueles que querem vender o vale. Após uma breve avaliação, ela indica a porta, que seria o provador, e aponta: “Pode subir”. Uma escada leva até o cômodo na qual ocorre a transação. O contato com aqueles que compram o benefício é limitado por uma divisória de madeira que separa a clientela.
Para a comunicação, é usado um guichê, onde também é repassada a máquina de cartão. Um homem explica como funciona a negociação: “O cartão tem de ficar 30 dias para ser descarregado. A gente dá o dinheiro na hora se você tiver o crédito. O cartão pode ficar aqui, que, a partir do próximo mês, depositamos em conta-corrente ou poupança”. Ali, descontam-se 15% do benefício em troca do dinheiro. Para não levantar suspeitas, os “escritórios” utilizam o benefício ao longo do mês; por isso, precisam ficar com o cartão e a senha do trabalhador.

Na Quadra 6 do Setor Comercial Sul, a forma de comércio irregular é diferente. Paga-se o valor do benefício no ato, sem reter o cartão. Lá, a porcentagem cobrada é de 16%. Para acessá-lo, basta subir uma escada que fica ao lado de uma lanchonete. Mesmo que a prática seja ilegal, placas na entrada indicam como o esquema funciona. “Abrimos de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h. A taxa cobrada é de 16%”, reforçam os letreiros nas paredes. O contato com a atendente também é limitado. Uma máquina de cartão fica à mostra, e a funcionária fica separada por grades. Dois homens vigiam o local, um na parte de baixo e outro na entrada.

A poucos metros de distância, no 6º andar de um prédio comercial, atua outra associação criminosa. Ali, a compra de vales ocorre de maneira semelhante à de Águas Claras. A taxa cobrada também é de 16%, mas o cartão fica no local. “Precisamos do documento (de identificação) e do cartão, que fica aqui. Te pago agora e você pega ele com 15 dias (sic)”, explica uma mulher que faz a negociação atrás de um guichê e dentro de um cubículo. Ela ressalta que, para o empregador não descobrir a fraude, o valor é debitado aos poucos. No extrato, aparece como se compras fossem feitas em padarias e mercados. Lá, a venda também é realizada mesmo se o benefício estiver zerado. É preciso apenas o agendamento do crédito para o valor ser repassado. Há até um cartão de contato, comprovando a cobrança dos tíquetes.


Punições Ao serem questionados sobre o comércio ilegal, os estabelecimentos flagrados pela reportagem optaram por não se posicionar. O Correio ligou para os dois localizados no Setor Comercial Sul, e ambos não quiseram comentar a venda irregular. No caso da loja de roupas de praia localizada dentro do hipermercado, a rede de produtos alimentícios informou, por meio da assessoria de comunicação, que, no contrato de locação, a atividade do local é de comercialização de artigos para ginástica, moda praia e esportiva. “Caso comprovada qualquer irregularidade nessa atividade, as medidas punitivas previstas no contrato serão tomadas”, concluiu.


O advogado trabalhista Dino Andrade alerta que o trabalhador envolvido em troca de vales alimentação ou refeição por dinheiro comete estelionato. Aqueles que realizam o comércio ilegal podem responder por sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e organização criminosa. “Os tíquetes que as empresas pagam são considerados indenizatórios. O empregado não pode optar por usar o cartão para qualquer outro fim que não seja a alimentação”, explica o especialista.

Além de cometer um crime, o funcionário flagrado pela prática pode ser demitido por justa causa. No entanto, o empregador só pode realizar o desligamento após o fim do processo judicial. “Se um trabalhador for demitido pela venda, a empresa está antecipando uma pena que só pode ser deferida pelo Poder Judiciário”, detalha o advogado. Além disso, o empregador que estiver ciente da venda dos benefícios por parte dos funcionários e não tomar um posicionamento assume o risco de ser descredenciado do fornecimento dos vales, além de sofrer penalidades legais.

A reportagem entrou em contato com a Polícia Civil do Distrito Federal, mas, em nota, a corporação informou que não conseguiu uma fonte oficial para comentar os flagrantes do Correio.

Padaria e farmácia
Há pelo menos três anos, o atendente de telemarketing Magno* (nome fictício), 26 anos, vende o próprio vale-refeição no Setor Comercial Sul. Segundo ele, o cartão e a senha ficam com os compradores e, todo mês, eles ligam avisando sobre o depósito. “Não tenho medo. É fácil pedir uma segunda via do tíquete. Tenho consciência de que é ilegal, mas fazer o quê? Preciso pagar as minhas contas, e o meu salário não é suficiente”, justifica. Magno revela que a maioria dos colegas faz o mesmo e indica os pontos de venda para os novatos. “No extrato, aparecem nomes de padarias, mercados e farmácias.” Ele recebe R$ 700 de vale-refeição e, ao negociá-lo, recebe R$ 588 em dinheiro.

A secretária Elena* (nome fictício), 24, vende o vale-alimentação. Com o crédito, ela paga as contas de água e luz e utiliza o restante para comer durante o mês. Ela soube pelo Correio que praticava um ato ilegal. “Eu comecei a vender por indicação de um amigo do trabalho. Ele falou onde eu poderia vender e nunca me questionei sobre o assunto. Estou surpresa”, conta. “O meu benefício cai hoje. Inclusive, pegaria pela manhã o dinheiro. Mas vou pensar duas vezes. Não posso perder o emprego por causa disso”, diz.

Uma pesquisa realizada pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) aponta que 20% dos brasileiros que recebem vales refeição ou alimentação negociam o benefício. O levantamento, divulgado em março, também mostra que 20% das pessoas não controlam os gastos do tíquete e 27% extrapolam o valor, sendo necessário complementá-lo.


Cartão de apresentação comprova a prática ilegal no Setor Comercial Sul



Não há obrigatoriedade por parte das empresas em fornecer os vales refeição ou alimentação. A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) não prevê o pagamento do benefício, ao contrário do vale-transporte. O empregador que adota esse tipo de bonificação o oferece como incentivo aos funcionários. Para que isso ocorra, ele deve ser cadastrado no Programa de Alimentação ao Trabalhador (PAT). Em troca, a entidade recebe incentivos fiscais. No entanto, o pagamento se torna obrigatório quando for determinado por convenção ou acordo coletivo de trabalho.


Diferenças


Vale-alimentação 
» Pode ser utilizado para realizar compras de alimentos em geral. 
Supermercados aceitam esse benefício como forma de pagamento.
Vale-refeição 
» A rede de aceitação se restringe a bares, restaurantes e lanchonetes. 
Como o próprio nome diz, deve ser usado para essa finalidade.

* Estagiário sob supervisão de Guilherme Goulart

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