segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O último tio avô


      
Olhos azuis e sorriso terno. Falar manso, de quem sabe dizer com carinho o que quer. Tímido como um menino encabulado, mas de cabelos branquinhos, como o algodão imaculado do meu tempo de menina. Lembranças felizes de uma infância com os primos e tios e os seus sorrisos de aprovação à vida. Parecido ao seu irmão, meu avô materno, Manoel André. O sorriso terno lembrava a minha bisavó, Dona Josefa chamada carinhosamente de Té, sua mãe.
       Trazia o cheiro do sítio, onde vivi em pequena, onde ele nasceu e cresceu impregnado na pele queimada de sol fazendo-o corado. Até parecia que ainda plantava roça e colhia, e batia o feijão seco para ensacar e descansar, de prato cheio por um bom tempo.
       A sua mulher, Natália, de língua afiada e palavras inexistentes no vocabulário normal, mas de uma risada rouca e barulhenta mostrando o dente de ouro a luzir na frente da boca, havia partido num dia desses, num último gemido do dia. Nem sei de que se foi, pois estava longe cuidando da vida, necessidade esta, que com o tempo afasta as pessoas.
       Deixou o eco da sua voz a perguntar-me coisas, seguida daquela gargalhada ruidosa de quem zombava dos que não entendiam o seu palavreado diferente e único, pois só ela sabia o significado do que dizia, porém com gestos e mãos rodopiando no ar, também nos fazia entender a tudo e a rirmos junto com ela, com a compreensão que o amor pelo outro nos proporciona.
       Certamente ele ouvia a voz dela pelos aposentos da casa, o que o fazia sentir-se menos só. Os filhos crescidos cuidavam da própria vida, mas davam-lhe com presteza a atenção que um pai carece. Já tinha sofrido a perda de um filho jovem, e mais ainda teve a vida destemperada pelo caminho vicioso e nocivo que este tomara.
       Como era o seu filho protegeu-o de ter o corpo devorado pelos cães, quando pereceu no pó barrento da estrada que dava a casa, onde o paiol estava tinto de sangue guardando o seu último gesto de defesa, antes de sair cambaleando, feito um bêbado tentando equilibrar-se no nada, até cair com a paz da morte, no cenário que o viu brincar na inocência da infância.
       Enterrou o filho desgraçado, que até a mãe renegou, cuspindo de lado depois de soltar a baforada do cigarro de palha, vício de há muito, companheiro dos seus momentos de introspecção, e ignorando a dor que sofrera para o infeliz nascer, resmunga: “Maldito”! Era tão novo e já tinha dado tanto desgosto... “esse não pode ser o meu filho”! Dizia ela entredentes; “Ninguém ensinou esse peste a ser ruim”... Falou. Olhar perdido no vazio. Infinito a perder de vista. O pai ouviu sem ter o que dizer. Ele próprio era tão correto. Tão bom. Aonde teria errado? Engoliu o soluço e saiu. Era preciso enterrar o filho.
       Só ele e o coveiro estavam ali, naquele silencio doído, vendo a cova ser coberta de terra. Nenhuma flor para testemunhar a sua tristeza e depois morrer murcha, abandonada na quentura dos dias. Nos seus ouvidos zunia o barulho dos tiros que ouviu. Foram muitos. Não deu pra contar. Só o suspiro de um pai sofrido que cumpriu a sua missão até o fim. Saiu curvado carregando o peso daquela vergonha. O tempo passara e parecia ter apagado toda a dor. Nunca mais falaram o nome daquele que era o seu filho mais novo. Anos depois venceu um câncer. Maldita doença que parece estar na moda! Pega todo mundo. Não escolhe. Chacoalha mesmo com a vida dos outros.
       Era forte. Vai ver foi criado à base da maxixada da mãe, para dar gosto ao feijão com farinha de mandioca. Era a comida de matuto, cheia de sustância, daquele tempo de luta numa terra seca. Todos os outros sete irmãos já tinham partido. A mulher também. Fazer o quê, agora que os filhos criados cuidavam da própria vida? Tinha que continuar a ser duro. Cortava os cabelos dos outros e fazia barbas como ninguém. Ofício que Deus lhe destinou para ganhar o pão na cidade onde foi morar. Foi o melhor barbeiro que pode.
       Os dias eram iguais como duas cabeças de fósforo. Suspirava e aceitava a vida, até que calado partiu. Não se despediu de ninguém. Quando ela chega assim não dá tempo nada. Noventa e sete anos e uma vida de lutas. Tio Roberto antes de fechar os olhos ouviu a mulher chamando os nomes que só ela sabia chamar. Ouviu latido de cães. Lembrou-se da sua mãe carinhosa. Ele viu os rostos dos filhos, um por um, passarem diante dos seus olhos baços, até mesmo aquele infeliz que lhe fez baixar os olhos de tanta vergonha. Finalmente ficou só e descansou de tanta vida.
       Recebi a notícia. Duas lágrimas desceram pelo meu rosto trazendo lembranças que atravessaram o tempo e chegaram ao meu coração.
       Tudo faz parte da vida... Até a morte.

                                                                     Lígia Beltrão
       


Um comentário:

  1. Obrigada pela postagem da minha crônica, hoje, neste Blog. Os meus desejos de sucesso e de uma abençoada semana!
    Lígia Beltrão

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