terça-feira, 19 de março de 2019

Ela foi embora...


Todos falavam nela. Todos tinham alguma coisa para falar dela. Uma guerreira das maiores! Construiu um império com as próprias mãos. Foi fada sem varinha de condão. Salvou vidas sem ser médica. Foi mulher sem perder tempo ao espelho. Enfeitou panelas e deu-lhes sabor e espalhou o cheiro dos seus temperos pelo ar, a perder de vista. Foi mãe santificando assim a sua condição de fêmea. Fez dois filhos. Ganhou duas noras e um casal de netos como prolongamento da sua “dinastia” no restaurante que criou com a bravura de uma leoa. Logo cedo enviuvou, mas seguiu firme na caminhada da vida.
       Exemplo de mulher! Dizem todos. O tempo passou e ela conseguiu construir o que poucos conseguem. Lutou dia e noite para isso. Nas suas noites devia sonhar e durante o dia realizava estes sonhos. O seu nome ecoa por todos os lugares. Todos a conhecem e cada um tem algo para dizer sobre ela. Fincou um marco onde viveu.
       Um dia, há alguns anos, o sol nasceu diferente para ela. Não saiu mais do quarto e nem da cama que a acolheu daí em diante. Adoeceu. Tinha de acontecer? Quem pode saber os desígnios do Grande Pai? Dia após dia a esperar em vão que tudo não passasse de um pesadelo e a vida voltasse a sorrir. Ilusão. Todos continuaram falando nela, admirando-a, tomando-a como exemplo. O tempo passou e a sua vida não saiu mais do ocaso dos dias. Até que o céu se cansou de esperar e a chamou para virar estrela, lá, entre as nuvens que correm e rodopiam vestidas de branco anunciando a paz.
       Não a conheci. Conheci a sua história e vi a admiração que todos sentem por ela. Conheci feitos seus, e foram tantos, que é impossível enumerá-los. Atendeu a todos que a procuraram e até vidas foram salvas por suas mãos bondosas. Nunca se cansou de fazer o bem a todos que a procuravam.
       Acordamos com a triste notícia da sua morte e o dia chorava copiosamente sem poder conter-se. Vi-a pela primeira e última vez. Uma mulher bonita, com a tez suave, a dormir profundamente o eterno sono que um dia chega a todos nós. Olhei aquele rosto sereno, quase angelical, e vi todas as mães que ela, de certa forma, foi para os que tiveram o privilégio de conviverem com ela.
       A igreja lotada mostrava o tamanho daquela mulher enquanto vivera. Gente de lugares distantes veio prestar homenagem a ela. A festa dos anjos lá no céu expandiu-se pela terra, que parando o choro sentido, mostrou um sol radiante e um mar de gente levando-a a sua eterna, agora morada.
       Caminhei junto a toda essa gente. Fiz-me, por momentos, íntima daquela que fazia correr lágrimas dos corações de tantos. Disse-lhe adeus como os outros disseram. Mostrei-lhe que sabia bem quem era aquela grande mulher, mas só nós duas nos entendíamos naquele instante. Ela, certamente me ouvia...
       Todos voltaram as suas moradas. O vento brando soprava baixinho como se gritasse o seu nome repetidamente e espalhava-o por todos os lugares ecoando em todos os cantos. E lembrando os versos de Santo Agostinho, tenho a certeza que assim será. “Eu sou eu, vocês são vocês. / O que eu era para vocês, / eu continuarei sendo. / Me dêem o nome / que vocês sempre me deram, / falem comigo / como vocês sempre fizeram. / Vocês continuam vivendo / no mundo das criaturas, / eu estou vivendo / no mundo do Criador”.
       Ela foi-se embora. Elvira, Elvira, Elvira... Chorava o vento baixinho...

                                                      Lígia Beltrão

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