sábado, 1 de fevereiro de 2020

Milton Nascimento relembra Clube da Esquina e regrava sucessos em série

Rio de Janeiro – "Depois de a gente ter feito três ou quatro músicas, eu disse para o Bituca: 'Um dia o mundo vai se curvar a você e sua música'. E se curvou", diz Márcio Borges, antes de relembrar uma antiga declaração de Elis Regina, "se Deus cantasse, ele cantaria com a voz de Milton Nascimento". "Bituca só me convida para coisa legal, desde que eu tenho 10 anos”, garante Lô Borges. "É um artista que nos eleva. Ao longo dos anos, vem tocando na alma das pessoas", avalia Seu Jorge. "Eu amo o Milton", resume Ney Matogrosso. Talvez você, leitor, mereça saber: não tem como se manter imparcial ao escrever sobre Milton Nascimento. Também sou fã. E quem não é?

Milton, 77 anos, sabe retribuir tanto carinho e admiração
alcançados ao longo da trajetória. Uma declaração dele, dada há seis décadas nos primeiros encontros de um grupo de amigos no cruzamento das ruas Divinópolis e Paraisópolis, em Santa Tereza, bairro de Belo Horizonte, virou um mantra entre eles: "Primeiro, a amizade. Depois, a música." Ali estavam Bituca, o mais velho da turma, e os irmãos Borges (Marilton, Márcio e Lô). Juntariam-se a eles Beto Guedes, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Tavinho Moura, Wagner Tiso e tantos outros talentosos instrumentistas e letristas para formar um dos movimentos mais profícuos da música brasileira, o Clube da Esquina.

A amizade permeia a série Milton e o Clube da Esquina, com estreia nesta sexta-feira (31) no Canal Brasil, às 22h30. Produzida pela Gullane e dirigida por Vitor Mafra, reúne Milton, Ronaldo Bastos, Lô e Márcio Borges em bate-papo conduzido pelo ator Gabriel Leone, cheio de nostalgia e grandes causos. Alguns, pouco conhecidos, como o que Milton quase teve um filho com Gal Costa – esse você saberá na próxima sexta-feira, no segundo dos seis episódios. O roteiro foi baseado no livro Os sonhos não envelhecem – Histórias do Clube da Esquina, de Márcio Borges.

A série foi toda gravada num pitoresco estúdio em meio a
montanhas em Minas Gerais. Com aura mística, 18 músicas foram regravadas por Milton com participação de convidados: Seu Jorge (Clube da Esquina Tudo o que você podia ser), Samuel Rosa (Para Lennon & McCartney Tanto), Lô Borges (Clube da Esquina nº 2 Trem azul), Gal Costa (Canção do sal Paula e Bebeto), Criolo (Morro velho e Travessia), Maria Gadú (Nada será como antesPaisagem da janela Fé cega, faca amolada), Iza (Cravo e canela), Gabriel Leone (Um girassol da cor do seu cabelo) e Ney Matogrosso (Maria, Maria). Bituca ainda canta sozinho Cais Nos bailes da vida.

O episódio 1 tem Seu Jorge, Samuel Rosa e Lô Borges. Nele, o Clube relembra as primeiras composições e dificuldades no início do grupo, como a resistência da gravadora em investir em Lô, até então um garoto desconhecido. "Quando a gente gravou, confesso que não imaginava que a coisa ia ser tão perpetuada ao longo de décadas. Atualmente, depois dessa trajetória toda, vejo que a música do Clube nos dá a oportunidade de fazer 20 anos várias vezes durante a vida", diz Lô.

A divertida saga até a gravação do disco
Na coletiva de apresentação da produção, realizada na última terça-feira, no Rio, Lô Borges relembrou com detalhes o caminho inicial. A divertida história merece longas aspas. "Dei muita sorte na minha vida, ter nascido numa família muito musical, que levava pessoas muito musicais lá para casa. Tive a sorte de ter conhecido Bituca na escadaria do prédio que a gente morava, eu era uma criança de 10 anos, ele já era um adulto”, relembra. "Ele gostava de uma bandinha que eu, Beto Guedes, meu irmão Yé e Márcio Aquino tínhamos, cover dos Beatles, chamada The Beavers, Os Castores, bem original, né?", diz, entre risos. "Ele gostava da banda, mas queria que a gente botasse uma música do Dorival Caymmi no meio do nosso repertório. Fizemos uma votação, e aí não rolou Caymmi", conta.

Lô cresceu, Bituca consolidou cada vez mais a carreira,


participou de festivais, gravou discos, como o incrível Travessia (1967) logo de estreia, ficou conhecido nacionalmente. “Eis que ele me chama para fazer um disco. Eu, totalmente despreparado, começando a fazer minhas primeiras canções. A primeira música que eu fiz com ele foi Clube da Esquina", diz Borges. Milton já tinha incluído uma faixa com Lô num disco (Para Lennon e McCartney, no álbum Milton, de 1970). "Aí, pensei: ‘Pô, as coisas estão começando a dar certo pro meu lado'."

Gravar um disco exigia mais. "Ele chega pra mim e diz: 'Bora
gravar um disco'. Eu falei: ‘Tenho que pedir à minha mãe, senão não rola'. Eu era menor de idade", continua Lô. Mais risos. O convite era para morar no Rio de Janeiro, e Lô queria ir com Beto Guedes. "Eu e Bituca fomos na casa do Beto pedir à mãe dele a mão do filho em casamento", diverte-se. Convenceram e embarcaram. "Fomos compondo. Bituca ia fazer show, tinha que sustentar a gente, pois era o único cara que botava grana na casa. Fazia parte da combinação com as mães", narra Lô.  A residência na Prainha de Piratininga, da qual eles chamavam de Mar Azul, em Niterói, gestou grande parte das composições do Clube. “Tudo que Milton chama, eu topo todas. Bituca chamou, o Lô pintou."
"Achava que não ia mais conseguir cantar"
A série coroa o fim da turnê Clube da Esquina, com passagem por nove países, várias cidades brasileiras e quase todas as capitais, incluindo Recife, em agosto passado. Celebra uma fase revigorada de Milton Nascimento. Em 2014, o cantor enfrentou problemas de saúde - chegou a ser submetido a um cateterismo. Em 2015, a barreira foi emocional, uma depressão - no mesmo ano, faleceu Fernando Brant, membro do Clube, aos 68 anos. “Achava que não ia mais conseguir cantar. Não por causa de doença, mas porque tinham coisas que eu não acreditava mais”, declarou. A pausa para respirar e o filho adotivo, Augusto, foram cruciais para a retomada, em 2017, quando voltou à estrada com o show Semente da terra, um repertório politizado, sobre questões indígenas, racismo e outras pautas sociais.

No ano passado, o carioca criado em Três Pontas, no sul de
Minas, viajou pelo mundo com a turnê. Esgotou ingressos por onde passou, foi acolhido por 15 mil pessoas no Mineirão, emocionou-se em programa ao vivo de televisão, gravou Milton e o Clube da Esquina com amigos. "Milton mesmo fez o convite para todo mundo. E quem fala ‘não’ para Bituca?", indagou Fabiano Gullane. "É um tributo para esses artistas. Uma obra que atravessa décadas. Tem 50 anos e continua atual, inspirando novas gerações."

Novo disco
O grupo lançou dois discos: Clube da Esquina (1972), da mítica capa com foto do pernambucano Cafi, com 21 músicas, e Clube da Esquina 2 (1978), com 23. o reencontro de agora deve render o lançamento de álbum duplo com as regravações das 18 canções escolhidas para a série. "Procuramos causar no estúdio uma espécie de déjà vu, para eles sentirem a vibração, os arranjos, a emoção, respeitando a obra original. Foi uma graduação na nossa vida musical", diz o produtor musical Eduardo Bidlovski, o BiD. 

SERVIÇO
Milton e o Clube da Esquina
Onde: Canal Brasil
Quando: estreia nesta sexta-feira (31), às 22h30 (os outros cinco episódios serão exibidos nas sextas-feiras seguintes, no mesmo horário)
Reprises: sábado (13h), domingo (2h e 9h) e segunda (0h15)
Streaming: após passar na TV, os episódios estarão no Canal Brasil Play, inclusive para não assinantes
Por: Rodolfo Bourbon

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