Seus olhos estão baços e perdidos no espaço e no tempo. Olha ao derredor procurando vestígios de uma vida feliz que ficou nas horas vividas. Tudo passara rápido, sem dar tempo de viver todos os sonhos. Os dias dormiram e as noites calaram-se ante a efemeridade da vida. A contagem regressiva paira no seu olhar vazio de sorrisos. Estampa-se no seu corpo fragilizado pelos muitos anos vividos.
Era um dia chuvoso e frio, mas o baile chegara para alegrar aqueles idosos da aldeia e eles foram chegando, sós ou em grupos. Muitos deles vindos de lares onde vivem por não terem familiares com tempo para lhes cuidar. Uns não pensam na penúria de viverem longe dos seus e já estão acostumados a olharem seus companheiros como a família que têm doravante. E assim, começam a dançar alegremente pelo salão preparado especialmente para eles e seu dia de idosos. Deslizam lindamente como se voltassem no tempo e empolgados, esquecem por momentos, a solidão da velhice.
Tantos assistem em suas cadeiras de rodas, sem perderem nenhum detalhe daquela festa, talvez se imaginando novamente jovens, quando sorviam a vida em toda a sua plenitude... Quem dera poder ler o pensamento de cada um deles e poder ajuda-los a serem mais felizes!
A tarde corria com animação e alegria total. Os rostos sérios e calados, aos poucos foram se transformando e olhos brilhantes soltavam faíscas de tão felizes. Cantavam junto. Pediam as músicas que gostavam. Se não havia homem suficiente, as mulheres acudiam-se umas as outras e formavam pares de exímias dançarinas. O importante era participar e usufruir daquele dia, para eles, mágico.
Foi assim que aquela senhora chamou a minha atenção. Sentada, com a bengala na mão ela olhava fixamente o tempo. O vazio. Perguntava-me, sem respostas, o que teria sido a sua vida. O que levaria aquela mulher dentro do coração. Quantas dores, saudades e desejos ela não sentiria?
Suas mãos trêmulas e seu rosto triste dava a ideia de que teve uma vida cheia de movimentos e não parecia estar satisfeita com o desfecho desta. Olhava curiosamente em volta e de quando em vez falava alguma coisa para as companheiras ao seu lado. Ria um riso tímido e na maior parte do tempo manteve-se olhando o conjunto tocar.
Chegou a hora do belo lanche e a festa animou-se ainda mais. A gigantesca mesa composta de quitutes variados, com sanduiches, bolos, refrigerantes, sucos, vinhos e tudo de melhor e gostoso, satisfizeram e deliciaram aquelas pessoas lindas. Pareciam crianças em dia de farra. Comendo de tudo, com uma algazarra contagiante. Ali, naquele lugar, todos podiam aproveitar o máximo e soltarem a alegria adormecida. O dia era todo deles.
Vale dizer que Portugal cuida dos seus idosos com muita atenção. Com ajuda financeira, assistentes sociais prontas a irem cuidar pessoalmente de cada um em suas casas, levando-lhes comida, dando-lhes banhos e carinho. Esta festa era um oferecimento da Câmara de uma cidade que é referencia nessa questão dos idosos. Acolhe e cuida muito bem. Digna de um grande aplauso e admiração. Exemplo a ser seguido por todos. E olhe, que o Senhor Presidente é ainda muito jovem, mas faz um trabalho fantástico, no que diz respeito ao social. Grande político e ser humano!
Após o maravilhoso lanche a música recomeça e todos voltam ao centro do salão numa enorme felicidade. O vinho ajudou alguns a descontraírem e a festa ficou ainda mais animada. A minha personagem continuava lá, no mesmo lugar segurando a sua bengala.
A música alegre enchia o salão. Enquanto soava: - “Dona Maria me deixa namorar a sua filha”... Em suas mãos trêmulas, sua bengala dançarina marca os compassos da música que toca o seu coração batendo no chão... Ritmadamente... E assim acompanhou toda a música, a silenciosa, Dona Maria.
Vendo aquele gesto dela fui embora com a sensação de um dever bem cumprido. Levamos uma tarde de felicidade àqueles corações já cansados. Voltaram agora mais sorridentes, para os lugares de onde vieram e ficarão a esperar o próximo baile.
Nunca esquecerei aquela bengala tocando no chão ao compasso da música...
Lígia Beltrão
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