terça-feira, 16 de julho de 2019

O Silêncio do Tempo


       
Quero definir a cor do silêncio que me rodeia. A quietude das horas leva-me a querer decifrar abstrações que gemem ao meu entorno. A síntese da existência está em ser, não em ter, mas vivo as contradições inerentes aos seres. Tenho a mania de sentir e querer decifrar enigmas. Quero criar algo, será ponto de partida para o inusitado?
       Olho o meu interior, num ritual de amor coroando a felicidade que me acompanha. As horas passam velozes e os momentos morrem sem a minha permissão. Há pensamentos que me seguem, vão mordendo o meu calcanhar para que eu não me esqueça da vida. Recolho os retalhos de mim, dentro desses pensamentos e sigo a sinuosidade dos instantes. Sou adepta da cerimonia do pensar. Busco no mais profundo de mim respostas a perguntas mudas.
       Tenho a alma alvoroçada pelas notícias que vou escutando, enquanto cuido do meu trabalho. Meu coração em rebuliço salta, feito um grito que se cala e esmaece na garganta. É tão fácil amar e ser feliz! Porque será que tantos não conseguem? O mundo chora sangue pela insignificância das coisas. Uma interação silenciosa de mim é firmada agora, na simbiose da cumplicidade com os meus tantos outros eus. Alcanço o paroxismo da minha própria interioridade. Elevo-me a etéreas dimensões do nada. Paradoxo de mim? Quem sabe...
       Os sopros das reminiscências soam alto. Sinto-me completa na liturgia do tempo, e esse, olha-me com o olhar inquisidor. Esse meu diálogo íntimo mostra-me todas as caras do mundo ao meu derredor. Prevalecem, para fortalecer-me, os meus melhores sentimentos. Escuto o cantar do vento nos talos que vão ficando nus anunciando o outono, que faz amarelar as folhas derrubando-as, para assim, vestirem o chão de terra do meu quintal. Neste tapete tecido pela natureza eu devaneio, enquanto sob meus pés o derradeiro suspiro de vida vira pó.
       A minha memória persevera em ações. Atiça a minha consciência, que sorri tranquila ouvindo o gorjear dos pássaros que batem as asas rumo ao infinito. Reclama espaços num mundo prenhe de renovações. E eu me renovo e me visto de mulher corajosa. Para trás deixei um punhado de coisas. Um monte de gente... Quiçá, se lembrem de mim!
       Arrumo a mesa com carinho. O fogo está vivo cozendo a refeição. O cheiro espalha-se pelo ar dizendo que ali habita a felicidade. Apago a chama e o espero. Logo ele adentrará e me beijará como sempre faz, com carinho e olhos apaixonados. Envolverei o seu pescoço com os meus braços e me entregarei às doces carícias dos amantes. Não quero hiatos a sustar o desejo.
       Nossos olhares encontram-se e falam todas as palavras que não ousamos. Logo a noite se faz silêncio. Escuto apenas a quietude da lua e o nosso suspirar harmonioso. Meus olhos retêm faíscas capazes de alumiar noites e dias. Cabe-nos velar pelos sentimentos e alimentar a fonte dos desejos, e esses são tantos...
       Seus braços me adornam o corpo cansado. Adormeço. Mergulho na ausência das coisas. Sou tão pequena e tão gigante ao mesmo tempo. Dilacero as amarras que tanto me sufocaram. Sou livre como o pássaro que alça o seu voo mais alto, sabendo que o ninho existe e o espera retornar. Acordo com a sensação de que, com pouco se é possível reinventar a vida. Repito Fernando Pessoa: “Quando olho para mim não me percebo./ Tenho tanto a mania de sentir/ Que me extravio ás vezes ao sair/ Das próprias sensações que eu recebo”.
       Criamos assim, os dois, o nosso livro dos dias, onde a história da vida, esta vida de amor, se perpetua a cada amanhecer...
                                                                   
(*) Lígia Beltrão é cronista  do jornal O  Columinho  e deste blog

2 comentários:

  1. Obrigada, amigo Augusto por esta lembrança tão cheia de sentimentos. Fiquei muito feliz ao recordar.
    Abraço!
    Lígia Beltrão

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  2. Felizes os que entendem,aceitam adornando a vida e partem diariamente rumo à felicidade. Mais um Lindo texto dessa preciosa escritora Ligia Beltrão . <3

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