Olho o meu interior, num ritual de amor coroando a felicidade que me
acompanha. As horas passam velozes e os momentos morrem sem a minha permissão.
Há pensamentos que me seguem, vão mordendo o meu calcanhar para que eu não me
esqueça da vida. Recolho os retalhos de mim, dentro desses pensamentos e sigo a
sinuosidade dos instantes. Sou adepta da cerimonia do pensar. Busco no mais
profundo de mim respostas a perguntas mudas.
Tenho a alma alvoroçada pelas notícias que vou escutando, enquanto cuido
do meu trabalho. Meu coração em rebuliço salta, feito um grito que se cala e
esmaece na garganta. É tão fácil amar e ser feliz! Porque será que tantos não
conseguem? O mundo chora sangue pela insignificância das coisas. Uma interação
silenciosa de mim é firmada agora, na simbiose da cumplicidade com os meus
tantos outros eus. Alcanço o paroxismo da minha própria interioridade. Elevo-me
a etéreas dimensões do nada. Paradoxo de mim? Quem sabe...
Os sopros das reminiscências soam alto. Sinto-me completa na liturgia do
tempo, e esse, olha-me com o olhar inquisidor. Esse meu diálogo íntimo
mostra-me todas as caras do mundo ao meu derredor. Prevalecem, para
fortalecer-me, os meus melhores sentimentos. Escuto o cantar do vento nos talos
que vão ficando nus anunciando o outono, que faz amarelar as folhas
derrubando-as, para assim, vestirem o chão de terra do meu quintal. Neste
tapete tecido pela natureza eu devaneio, enquanto sob meus pés o derradeiro
suspiro de vida vira pó.
A minha memória persevera em ações. Atiça a minha consciência, que sorri
tranquila ouvindo o gorjear dos pássaros que batem as asas rumo ao infinito.
Reclama espaços num mundo prenhe de renovações. E eu me renovo e me visto de
mulher corajosa. Para trás deixei um punhado de coisas. Um monte de gente...
Quiçá, se lembrem de mim!
Arrumo a mesa com carinho. O fogo está vivo cozendo a refeição. O cheiro
espalha-se pelo ar dizendo que ali habita a felicidade. Apago a chama e o
espero. Logo ele adentrará e me beijará como sempre faz, com carinho e olhos
apaixonados. Envolverei o seu pescoço com os meus braços e me entregarei às
doces carícias dos amantes. Não quero hiatos a sustar o desejo.
Nossos olhares encontram-se e falam todas as palavras que não ousamos. Logo
a noite se faz silêncio. Escuto apenas a quietude da lua e o nosso suspirar
harmonioso. Meus olhos retêm faíscas capazes de alumiar noites e dias. Cabe-nos
velar pelos sentimentos e alimentar a fonte dos desejos, e esses são tantos...
Seus braços me adornam o corpo cansado. Adormeço. Mergulho na ausência
das coisas. Sou tão pequena e tão gigante ao mesmo tempo. Dilacero as amarras
que tanto me sufocaram. Sou livre como o pássaro que alça o seu voo mais alto,
sabendo que o ninho existe e o espera retornar. Acordo com a sensação de que,
com pouco se é possível reinventar a vida. Repito Fernando Pessoa: “Quando olho
para mim não me percebo./ Tenho tanto a mania de sentir/ Que me extravio ás
vezes ao sair/ Das próprias sensações que eu recebo”.
Criamos assim, os dois, o nosso livro dos dias, onde a história da vida,
esta vida de amor, se perpetua a cada amanhecer...
(*) Lígia Beltrão é cronista do jornal O Columinho e deste blog
Obrigada, amigo Augusto por esta lembrança tão cheia de sentimentos. Fiquei muito feliz ao recordar.
ResponderExcluirAbraço!
Lígia Beltrão
Felizes os que entendem,aceitam adornando a vida e partem diariamente rumo à felicidade. Mais um Lindo texto dessa preciosa escritora Ligia Beltrão . <3
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