Coordenador do Supremo em Números da FGV afirma que Judiciário só assume o protagonismo porque legisladores evitam o desgast
Coordenador do projeto Supremo em Números, da Fundação Getulio Vargas (FGV), Ivar Martins Hartmann defende uma reestruturação geral na República. Para o pesquisador, a atual situação brasileira, em que há interferência e sobreposição entre as atribuições de cada Poder, não é compatível com a Constituição Federal. “E o primeiro passo é mudar pelo voto. O Congresso não vai mudar sozinho. O Supremo não podemos mudar. É o Congresso que vai mudá-lo”, defende o especialista em Direito Público. Uma das principais alterações defendidas pelo professor da FGV Direito Rio é o fim do foro privilegiado. Segundo ele, se fosse para mantê-lo, deveria ser somente para os presidentes dos Poderes. Mas ele não tem esperanças de que isso aconteça. Hartmann também defende mudanças também na estrutura do STF, que, segundo ele, está desvirtuado das funções por diversos motivos, entre eles, um “certo egoísmo” do Legislativo. “O Congresso só reage quando é para parar o avanço do Supremo sobre questões individuais dos congressistas.”
Por que estamos vivendo um período tão intenso de protagonismo do Supremo Tribunal Federal?
A composição atual do Supremo é reflexo de um partido progressista que ficou muitos anos no poder, preencheu muitas vagas e, portanto, é mais progressista do que o atual Congresso. Em relação a se posicionar sobre temas importantes e conflitantes, temos que saber diferenciá-los. Um primeiro tipo de tema é o que envolve as garantias mais básicas de convivência, de sobrevivência e até de dignidade de grupos de pessoas historicamente excluídas do poder político e o acesso à bens da sociedade como educação, saúde e tudo mais. É o caso da descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação. Nesse tema, a maioria do Congresso não pode escolher o que garantir a esses grupos.
Mas o presidente da Câmara (Rodrigo Maia) instalou uma comissão para rever a decisão do STF nesse caso.
Essa é uma questão sobre a qual o legislativo não pode dispor. Não tem autonomia para interferir em uma questão tão básica sobre o direito reprodutivo das mulheres. Um outro tipo de interferência é uma situação muito cara e importante para os legisladores, especialmente, quando diz respeito a situações em que eles podem ou não ser incriminados, investigados, situações de perda de mandato, aposentadoria, salários, benefícios e privilégios. O legislador quando quer se proteger, ele consegue. E há também um terceiro tipo, que não diz respeito ao congressista individualmente ou a categoria e, ao mesmo tempo, não diz respeito a direitos e garantias básicas de minorias ou até do cidadão em geral. Sobre essas questões, o Congresso — atualmente mais do que antes — fica em uma posição de conforto e deixa o Supremo decidir. É um certo egoísmo, faz isso para não se desgastar.
Mas o Supremo deve opinar, por exemplo, em casos como a nomeação do ministro Moreira Franco?
Isso não está relacionado ao Legislativo, mas, sim, ao Executivo. É um avanço sobre uma prerrogativa do Executivo. E, nesses casos, o Congresso não faz nada. E eles podem fazer e não fazem. O Congresso só reage quando é para parar o avanço do Supremo sobre questões individuais dos congressistas.
E a lei do abuso de autoridade?
Não resolve nada. Ela não ataca os problemas de processos decisórios do STF, não ataca garantias recessivas e penduricalhos de juízes e promotores de Justiça nas 1ª e 2ª instâncias. Ela não faz nada de útil. Apenas tenta criar uma possibilidade de arma individual, pessoal do legislador contra o Judiciário, para ser usada de maneira autoritária.
São válidas as queixas dos ministros do STF de sobrecarga de processos?
Estão assim porque querem, porque isso dá mais poder a eles. Eles têm um estoque gigantesco de processos dos mais variados tipos e isso significa que eles podem decidir a qualquer momento sobre basicamente qualquer coisa do direito brasileiro.
Mas como resolver a quantidade de recursos e ações que chegam a eles?
Há mecanismos de devolver estes processos, sem julgar o mérito, inclusive, sem recursos. Eles não fazem isso porque preferem ter essa quantidade de processos. A legislação foi alterada há 10 anos para dar essa garantia e poder aos ministros de rejeitar ou não julgar. Uma fonte, por exemplo, que cresceu muito nos últimos anos e vem ocupando muito tempo é justamente o habeas corpus. E cresceu porque os ministros começaram a tomar decisões que não precisavam e não deviam. Concedendo habeas corpus que não eram necessários e convidando mais habeas corpus.
O foro privilegiado contribui.
A maioria deles gosta de ter esse poder. Esse poder não passa apenas pelo foro privilegiado porque, de qualquer maneira, como eles abriram essa via do habeas corpus, isso chegaria para eles de qualquer maneira. O mais importante nisso tudo é que o foro privilegiado deixasse de existir. De novo uma alteração que o Congresso deveria fazer, mas não vai fazer porque tem a ver com aquele segundo tipo de questão que envolve as questões individuais que eles tentam proteger. O foro só cria problemas. Se fosse para manter para alguém, que fosse só para os presidentes de Poderes. O Congresso não vai mudar sozinho. O Supremo não podemos mudar. É o Congresso que vai mudá-lo. O STF é o Congresso que a gente elege.
E a indicação do ministro licenciado da Justiça, Alexandre de Moraes, para o STF contribui para essa mudança?
Não me sinto à vontade para falar sobre o Moraes já que sou coautor de um relatário com ele, então, não sou imparcial. É uma pessoa tecnicamente capacitada, biologicamente conservador, como é conservador o governo atual. Tem algumas posições com as quais discordo e tem um perfil bem diferente das últimas indicações como o ministro Joaquim Barbosa e o ministro Luís Roberto Barroso. Mas não tem nenhuma indicação que o Temer pudesse fazer agora que iria, sozinha, magicamente mudar todo esse panorama. Especialmente, das opções que foram divulgadas pela mídia. As opções que estava sendo consideradas eram muito parecidas, especialmente em questão de capacidade e no ponto de vista de inclinação ideológica.
Foi uma boa decisão deixar a relatoria da Lava-Jato com o ministro Fachin?
Acho que sim. Talvez, nesse momento, o mais importante é que seja um nome que não tenha nenhuma conexão partidária com o PMDB, que é o partido mais envolvido, então ele preenche esse requisito com louvor. É um ministro muito sério, que não faz politicagem, não adianta votos em público, não toma decisões individuais temerárias. Feliz para a história do Brasil que ele foi sorteado.
Ele mantém a postura do Teori Zavascki de falar somente nos autos?
Sim. A lei diz isso, não é uma questão do que eu acredito ou deixo de acreditar. A lei orgânica da magistratura diz que o juiz não pode se pronunciar sobre casos que ele julgará depois. Alguns ministros não cumprem a lei. Prejudica, mas é uma coisa que a imprensa estimula, porque para o noticiário é interessante que um ministro emita opiniões. Ninguém aponta a gravidade disso.
Como é estar na posição de avaliador do Supremo?
O projeto já tem oito anos, temos 4 relatórios lançados, muitos artigos acadêmicos e levantamentos que foram divulgados pela sociedade civil. Talvez, o mais importante lançado recentemente, mostra o número de pessoas que poderiam ser levadas à prisão depois da decisão sobre prisão a partir da condenação em segunda instância. Os resultados têm sido muito positivos, especialmente, por ter mudado a perspectiva pela qual se observa o Supremo, a maneira como se compreende, se analisa. Ela mudou radicalmente para uma visão de menos palpite, opinião e argumentos de autoridade e mais dados, estatísticas e realidade comprovada.
Essa análise do Judiciário permite, por exemplo, entender parte dessa crise no sistema prisional?
Uma coisa assim nunca tem uma causa só e nunca tem só um problema para consertar. Mas, na minha opinião, o problema mais urgente é o investimento no sistema prisional. Tem que se construir mais prisões e construi-las, minimamente, dignas. Uma prisão onde quem manda não é a facção, onde uma pessoa não entre temendo pela sua integridade física, pela própria vida e dos familiares. Essa é a mais básica garantia que um estado civilizado proporciona ao cidadão. Uma pessoa que está presa não deixa de ser cidadã. Se nós tivessémos metade dos presos que temos hoje, ainda assim eles estariam vivendo em condições desumanas.
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