segunda-feira, 26 de novembro de 2018

O Catador de Sonhos


       
O abraço foi apertado. Gosto deste senhor sem ter nem por que, gosto de graça, como diz o bom e apaixonado brasileiro quando gosta de alguém. Conheço-o há algum tempo e ele me encantou ao contar-me histórias engraçadas e “causos” que me levaram às lágrimas de tanto rir. Passa ele pelos noventa anos com a gana de viver de um jovem que está a descobrir o mundo. Cata sonhos descartados pelos outros...

       Durante toda a sua vida ele guardou tudo o que por acaso vai achando pelas ruas. Desde um simples parafuso a um móvel que foi despachado no lixo por alguém que foi em busca de outra coisa sonhada. Quando digo que ele cata sonhos, quero lembrar que todos nós sonhamos comprar algo, ou para nós ou para a nossa casa, e assim fazemos. Quando começamos a sonhar com outra coisa, geralmente jogamos fora aquela que não nos interessa mais, quer seja por imposição dos modismos, ou porque já não nos apetece usar determinados objetos. Descartamos assim os nossos sonhos de outrora. Ele, o meu amigo, vem e se reabastece com o que jogam fora e coleciona coisas a perderem-se de vista. E ai de quem ousar jogar aqueles achados fora... Ele vira uma fera!
       Esse seu jeito, claro que chama a minha atenção, nunca antes de conhecê-lo vira alguém colecionar lixo, que ele rindo diz que traz do “armazém”. Há de tudo. Luminárias antigas, cômodas, quadros, livros, cadeiras e mesas, tapetes... Tudo mesmo. É realmente um “armazém” que o faz abarrotar a sua casa, cá pra nós, de quinquilharias.
       Esta semana, aproveitando uma viagem à cidade de Lisboa, onde ele mora, fui visitá-lo. Mostrou-me as “novidades” adquiridas e conversamos algum tempo. Disse-me que se sentia mal e fraco e que no Natal não iria a lado nenhum, queria passar em casa e não sairia por nada. Queria sossego. Senti-o um pouco “parado”, mas talvez tenha sido efeito de uma viagem que fizera com a filha ao Porto, no final da semana. Cansaço. Só. Pensei eu um pouco preocupada.
       Após o nosso papo, como sempre gostoso, dei-lhe o meu abraço bem apertado, de despedida. Ele segurou as minhas mãos, olhou-me nos olhos, e muito sério falou:
- Vamos fazer um trato? - No que eu respondi-lhe prontamente -, Vamos, se eu puder cumprir... Falei sentindo-me uma pessoa incrédula naquele momento. Ele muito sério e convicto do que falava pediu-me:
- Vamos trocar este mesmo abraço apertado daqui a dez anos?
Olhei o meu amigo com extremado carinho e emocionada disse-lhe: - Claro! Vamos trocar o abraço e comemorar o seu centenário. Será uma festa linda!
       Ele apertou as minhas mãos e olhou-me com um carinho que precisei segurar as lágrimas que me engasgavam a voz. Falamos mais algumas palavras, com a emoção nos dominando. Saí dali pensando se o amanhã nasceria para nós com o mesmo esplendor de até então, imagina se daqui a dez anos... Veremos...
       Aquele homem, do alto dos seus noventa anos tem me ensinado coisas tantas, mesmo sem saber que o faz. Tem me mostrado que a esperança deve nos acompanhar sempre, aonde quer que estejamos. Fiquei pensando no nosso reencontro e na vida que ele leva. Será que busca coisas no “armazém” para passar o tempo e ocupar os seus dias vazios e solitários? Ou realmente estas coisas descartadas por outros têm algum valor e seus donos não perceberam? Afinal já foram sonhos que foram concretizados.
       Fui embora sentindo ainda o calor do seu abraço e com aquela promessa guardada no coração, para ser cumprida por nós daqui a dez anos. Tomara eu chegue lá, porque ele, certamente estará a minha espera para isso. Enquanto o tempo passa ele continuará visitando os “armazéns” dos vizinhos e levando para casa os sonhos perdidos e jogados fora por alguém. Até daqui a dez anos meu amado amigo, Senhor Abel... Grande catador de sonhos!

       
                                                                     Lígia Beltrão
       

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