domingo, 17 de fevereiro de 2019

Carnaval: respeito às diferenças e aos corpos femininos

Por: Maiara Melo


Ações empoderam e mostram que assédios não serão tolerados
Ações empoderam e mostram que assédios não serão toleradosFoto: Ed Machado















Os clarins de Momo já anunciam o Carnaval e homens e mulheres lotam as ruas com uma perspectiva diferente do restante do ano: mais cores, mais energia, muita purpurina, exageros. Porém, entre um bloco e outro, grupos organizados e o Estado tentam entoar vozes para lembrar alguns limites: o respeito às diferenças e aos corpos femininos. “No Carnaval, a gente sabe que se afrouxam os limites, afrouxam-se a moral, se bebe além da conta e tem essa ideia, essa cultura, de que está tudo liberado”, explica Goretti Soares, presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Pernambuco. 

“Se está tudo liberado, equivocadamente, recai sobre a população LGBTQI+ e a mulher uma violência multiplicada. Não deveria ser assim. O Carnaval traz essa preocupação preponderante.” Camila Albino e a companheira Ana Carolina Miranda sabem bem o que é essa violência potencializada durante o Carnaval contra as mulheres e homossexuais. “Como a gente já sabe disso, procuramos sempre andar em bando, em um grupo grande de amigos e amigas. Porque acaba inibindo. Nos sentimos um pouco mais protegidas. Mas mesmo assim ainda escutamos algumas insinuações, que deixam a gente constrangida”, conta Camila. 

“Quando estamos sozinhas, é muito pior. Ouvimos gracinhas, enxerimentos, porque as pessoas acham que estão livres para isso, para falar e fazer o que quiserem.” Juntas há seis anos, Camila conta que ela e Ana tentam lidar da melhor maneira em situações como essa. “A violência aumenta nessa época, é visível. E fazemos o possível para não virar estatística. Então às vezes a gente só sai, tira por menos, silencia”, lamenta. 

De acordo com dados cedidos pelo Ministério da Mulher, da Família, e Direitos Humanos (MMFDH), Pernambuco registrou 811 denúncias ao Ligue 180 - Central de Atendimento à Mulher, no período do Carnaval em 2017. No ano de 2018, foram 977 durante a festa de Momo. Números subnotificados, porque muitas vezes as mulheres não chegam a denunciar, mas que podem ser ainda maiores neste ano, seguindo a tendência crescente dos últimos anos. 

“A violência de gênero é muito ligada ao corpo feminino. Nós vemos um alto índice de violência contra a mulher porque tem muito a ver com a objetificação do corpo feminino. E as pessoas LGBTQI+, de certa forma, acabam sendo associadas ao feminino”, explica Goretti Soares. Ela explica que o preconceito em torno do menosprezo ao gênero feminino e tudo aquilo que se assemelhe a ele é cultural. 

“Se um homem que é gay, ele recebe um preconceito múltiplo, duplicado, porque o homem não deveria querer parecer mulher. Uma mulher que se declara lésbica é meio que houvesse uma ofensa ao patriarcado, como se uma mulher querer exercer a função de um homem, assumir uma relação de poder. Mas não tem nada a ver com isso”, revela Goretti. 

“É apenas uma condição humana. No Carnaval, essa violência se potencializa justamente por causa dessa concepção equivocada e cultural de que o corpo da mulher é um objeto que pode ser tocado e abusado. A ideia de que o corpo da mulher não pertence à mulher, mas ao mundo, ao Estado, ao homem, enfim, está disponível. Essa é a realidade do patriarcado, do machismo, da homofobia e da LGBTfobia”, continua. 

Segunda a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQI+ no mundo. “É um dado absurdo. Pessoas são vítimas do preconceito porque são quem são. Se agride e se mata LGBT apenas por elas serem quem são. Transexuais e travestis são muito mais agredidos porque não tem o tal do armário, não são confundidos”, diz Goretti. “Eles trazem no corpo a imagem da transmutação, da transformação e isso gera muito mais violência, muito mais intolerância, muito mais ausência de empatia.” 

A criminalização da homofobia está sendo discutida e no Superior Tribunal Federal (STF) desde o último dia 13 de fevereiro. Nas duas ações em julgamento, PPS (Partido Popular Socialista) e Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) pedem que seja considerado crime todas as formas de ofensas individuais e coletivas, homicídios, agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima. 

“É lamentável a gente precise criminalizar uma coisa tão óbvia. Ninguém tem que matar ninguém por ser quem é. Infelizmente, em um país onde isso acontece, a gente tem que arrumar formas de agir. Tentar reduzir as mortes, porque sabemos que não vai acabar”, ressalta Goretti. “Então, temos que orientar a população LGBTQI+ e as mulheres para se protegerem. Cobrar das autoridades atuação em relação a essas pessoas. A sociedade civil está organizada. O que falta são políticas públicas que garantam segurança a essas pessoas.” 

Para ela, caracteriza uma tortura um indivíduo sair para rua sem saber se volta. “Você consegue imaginar o que é isso? Andar com medo, sem pode andar numa rua escura, sem poder andar de mãos dadas, sem poder usar uma roupa?! Correndo o risco de ser violentada ou assassinada. É cruel dizer para as pessoas ficarem atentas, mas é necessário.” 

Para isso, é preciso entender e saber identificar as várias violências. “Tanto quem pratica, quanto quem é vítima precisa aprender a identificar. Porque nós somos criados dentro de um contexto onde a violência é comum, que às vezes nem a gente consegue identificar um ato de violência. Incomodou? É um ato de violência, sim. O assédio começa de forma muito sutil”, ressalta Goretti. 

O assédio muitas vezes passa apenas pela palavra ou com gestos obscenos. “Vem o gesto, vem a palavra, vem a ação e vem o toque. Às vezes a ação não leva ao toque, mas já é uma violência. Se você ofendeu alguém, o mínimo que tem que fazer é pedir desculpas e se retirar.” Sobre o assunto, a Lei Nº 13.718, de 24 de setembro de 2018, alterou o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, para tipificar os crimes de importunação sexual, que passou a punir com prisão responsáveis por situações de assédio que antes rendiam apenas uma multa ao agressor que pratique qualquer ato libidinoso contra alguém, sem seu consentimento, para satisfazer o próprio desejo ou de terceiros. 

Há também Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940, que considera crime o assédio sexual, que é constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual. E, ainda, a lei no 12.015, de 2009, que denomina estupro como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou a permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.

Denúncias 

No que diz respeito ao Estado, pessoas LGBTQI+ podem recorrer ao Centro Estadual de Combate à Homofobia (CECH), que é ligada àSecretaria Executiva de Direitos Humanos de Pernambuco. A Prefeitura da Cidade do Recife também dispõe da Gerência de Livre Orientação Sexual (GLOS) e do Centro Municipal de Referência em Cidadania LGBT. 

Todos esses canais oferecem orientação geral sobre direitos humanos a qualquer vítima de violação, informando sobre as garantias legais e encaminhando para os serviços especializados de atendimento a cada caso específico. As mulheres contam, também, com o Ligue 180, além de uma das armas mais potentes dentro da temática: a sororidade. É o que acreditam as mulheres à frente da parceria Não é Não e Aconteceu no Carnaval (ANC), que vai distribuir 20 mil fitinhas e a mesma quantidade de tatuagens temporárias durante o Carnaval. 

“O aconteceu no carnaval surgiu em 2017, uma parceria do Mete a colher junto à rede Meu Recife e se tornou uma campanha de combate ao assédio à violência contra a mulher no Carnaval”, conta Isabel Cavalcenti, do Mete a Colher. “No primeiro ano, nós fizemos a ação de distribuição das fitinhas da sororidade, que são fitinhas em que as mulheres podem se reconhecer no meio do Carnaval e saber que podem contar uma com a outra.” Elas começaram a parceria com o Não é Não, um projeto que nasceu no Rio de Janeiro e passou a alcançar outros estados no Carnaval de 2018. 

“Desde então começamos a ser embaixadoras do Não é Não aqui em Pernambuco. A fitinha para o fortalecimento da sororidade, para as mulheres estarem sempre juntas. E as tatuagens para que as mulheres façam do seu corpo uma manifestação política”, explica. A ideia principal do projeto é fortalecer as redes de mulheres e fazer com que elas se empoderem e reconheçam o seu corpo como uma ferramenta de manifesto político, de resistência. 

Na fitinha da sororidade, a mensagem é clara: “Sou mulher e luto contra o assédio. Conte comigo. Denuncie com a tag #aconteceunocarnaval e ligue 180.” “O simples fato de termos voluntárias no Estado todo, olhando no olho de outras mulheres e dando essa fitinha e essa tatuagem, é um lembrete de que a gente precisa estar junta, precisa se unir e reforçar a mensagem de que a culpa não é nossa”, ressalta Isabel. “A gente tem que se fortalecer, não ter vergonha de ser quem se é e não se sentir ameaçada pelos olhares, pelos assédios. Não podemos deixar de brincar o carnaval por conta disso. Queremos atingir essas 20 mil mulheres.” 

Elas realizaram uma campanha de crowdfund para ajudar a custear o material. Também planejam o lançamento de um vídeo institucional que para dialogar com as mulheres e pretendem lançar um aplicativo. “Para que as mulheres consigam identificar outras mulheres e não precisem voltar sozinhas para casa”, adianta Isabel. Para isso, elas contam com a ajuda de voluntárias. “Nós estamos atuando com voluntárias, para que a gente tivesse capacidade de capilaridade. Chegar em lugares como Bezerros e Nazaré da Mata, assim como blocos descentralizados no Recife e Olinda.” 

E também com blocos parceiros: Comigo é Assim, Hoje a Mangueira Entra, Da o Loud, Porca Digital, Minhocão de Olinda e Macuca. O Grêmio Anárquico Feminístico Essa Fada também faz parte da parceria. Sob o tema “Coletivo de mulher é luta”, o bloco prepara seu quinto desfile voltado à resistência das mulheres às ameaças de retrocessos e pretende que a mobilização de Carnaval aqueça o engajamento para a marcha do 8 de março, que ocorre logo após a folia. 

“Surgimos de uma brincadeira. Porque a gente se sentia muito incomodada na hora de comprar fantasia, porque há alguns anos atrás o que tinha disponível para as mulheres eram personas e arquétipos sexualizantes. Uma sexualidade para agradar ao público feminino. A anjinha, a noiva, a diaba, enfermeira”, explica Geisa Agrício, um dos nomes à frente do Essa Fada. 

“Uma hiperssexualização da mulher no Carnaval. E a mulher que se portasse no Carnaval com essa liberdade do corpo, não era bem vista, julgada.” Diante desse cenário, surgiu o grupo. “A gente não quer ser julgada por transar com quem quiser, beber, beijar. E aí surgiu esse trocadilho ‘essa fada’. Sair de essa fada. E aí rapidamente espalhou a ideia e saiu como um bloco. No primeiro ano saímos com um carrinho de CD porque foi tudo muito em cima da hora”, lembra, entre risos. 

Geisa explica que o próprio bloco passou por um processo de desconstrução, tentando respeitar a diversidade dentro do público feminino. “Mudamos a arte da camisa, por exemplo. Que no começo trazia uma referência à obra Brennand, que é conhecidamente um objeto fálico. Mas essa arte não representava as mulheres lésbicas”, diz. 

“E aí abraçamos essa causa da sororidade, aderindo à campanha nacional do Não é Não, em parceria com o Mete a Colher e o Aconteceu Não é Não.” Neste ano, elas decidiram sair da ideia do empoderamento individual para apoiar o coletivo. “A gente pensa numa conjuntura nacional, política, de ameaça de retrocessos. E a gente colocou que ‘O coletivo de mulher é luta’, porque não me empodero sozinha. É um processo comunitário. Para que todas as mulheres consigam o seu lugar no mundo, para a gente respirar igualdade”, completa Geisa. 

O bloco é formado somente por mulheres e acontece no dia 27 de fevereiro, a partir das 18h, na Casa Astral, com as DJs Gabriela Alcântara, Carol Almeida (#leiamulheres) e a Anette Carla (da festa carioca Xêpa), além do cortejo embalado pela Orquestra Livre, também protagonizada apenas por mulheres. A entrada é franca. “A gente não vai arredar o pé. Nem andar para trás, por mais que os cães estejam ai ladrando. A gente vai se posicionar e lutar, por mais que exista aí um movimento opressor.”

Confira dicas para aproveitar a folia com mais segurança:

Infográfico
Infográfico - Crédito: Arte/Folha de Pernambuco

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