quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Vivências


      
A vida inteira foi deixada para segundo plano. Era uma criança quase adulta pela necessidade de crescer antes da hora. Sonhava com o amanhã, e nele colocava todas as coisas bonitas que queria ter e ser. Tantas vezes precisou de alguém que a ouvisse, porém era sozinha e tudo o que tinha era o seu quintal, que até então era maior que o próprio mundo. Coberto de ervas e chão lodoso tinha cheiro de esperança e ali o encantamento de menina dava asas a sua imaginação fértil.
       Daquele quintal correu para todas as partes do mundo. Ali lia, quando lhe era permitido, algum livro que a transportava além da sua imaginação. Seus sonhos cresciam como as heras que subiam muro acima e perdiam-se na altura quase gigante daquela parede de tijolos vermelhos, monumento intransponível para os seus poucos anos de criatura sonhadora.
       O tempo correu sem que ela se percebesse da invulnerabilidade dos dias. Até que um príncipe a levou além do muro para conhecer a vida, agora de adulta, não tão livre quanto sonhara, mas uma vida toda sua, onde as suas vontades eram respeitadas mesmo que os seus sonhos mudassem de olhos com o passar do tempo, onde construiu uma janela para ver o horizonte se descortinando ao longe, porém, tinha receios de olhar por ela. O mundo era um bicho que devora sonhos e vidas. Metia-lhe medo.
       Seus cabelos negros foram mudando de cor. O seu rosto desenhou caminhos que se cruzavam aqui e acolá. As suas mãos estavam ficando cansadas e as histórias que imaginava tremulavam com a fragilidade dos desencantos. Como sempre, precisava manter-se forte. Tinha agora uma família que dependia dela para viver. Engolia o sal das lágrimas por entre os risos da resignação. Até que o príncipe partiu, não no galope de um cavalo, mas encantou-se nas brumas. Para sempre. Ela não podia chorar tinha que continuar sendo forte e dura como as rochas. Abriu a janela para a vida...
       E esperançosa, debruçou-se na janela do tempo. Procurava o seu amor. O vento zunia, cantando baixinho uma canção de saudade. Ela imaginava seu sorriso gostoso, escancarado, após contar uma piada, mesmo que não tivesse muita graça... Ela ria não da piada, mas daquele sorriso carente de afeto, de abraços apertados, de beijos de amor, que ela fazia questão de dar-lhe. Gostava de mimar os seus, de dar-lhes tudo o que nunca teve, de fazê-los felizes, mesmo que também estivesse aprendendo a sê-lo.
        Pensava que tudo fora um sonho. Um sonho ruim que tinha vindo zombar do seu coração e brincava com ela de faz de conta. Suspirou desencantada... Todos os seus sentidos gritavam por ele. Só o canto dos grilos e o coaxar dos sapos se misturavam ao som dos ventos e quebravam o silencio da noite escura. A lua alumiava, era plenilúnio, mas ela havia esquecido quanto amava a lua cheia e só via o escuro do tempo.
       Ela se fazia desejos e era vencida pela dor da solidão. Seus olhos, sempre sorridentes, viraram oceanos profundos donde suas águas salgadas inundavam seu coração dorido. Escutava a gargalhada que se distanciava e se perdia no vácuo do tempo. Vestiu-se de saudade. Tinha sido realmente feliz?
       O seu passado encantara-se, no desconhecido das horas infindáveis do eterno. Uma estrela piscou-lhe, esperou que descesse mais baixo, com intenções de tentar pegá-la. Inutilmente fez seu pedido como quando criança, mas era impossível reverter à vida. Não tinha príncipe montado em cavalo branco de crinas douradas, como pensava quando criança. Só no seu coração o amor era um achado eterno, como todos os amores.  Suspirou novamente, fechou a janela do tempo e foi dormir. O sonho também dormiu e juntos viram chegar o seu grande e verdadeiro amor. Ela se fez, finalmente, mulher!

                                                          Lígia Beltrão

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