quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Encantamento


      
Estava eu parada e observando o entra e sai de pessoas e os abraços e beijos distribuídos entre os familiares e os amigos da falecida. À entrada da capela a sua fotografia mostrava a mulher que um dia fora. Fiquei um tanto impressionada com a sua beleza. Os seus traços de altivez mostravam a bem nascida mulher que o tempo, sem nenhuma dó transformara no que restava de todo aquele esplendor de antes.
       O cheiro de flores deixava o ar com um misterioso odor de morte. As velas choravam o seu fogo derradeiro cumprindo a missão de alumiar a passagem daquela criatura, desta vida para aquela que nós acreditamos ser a eterna (?). Jaziam ali naquele caixão, todos os sonhos sonhados por ela numa vida e mortos a “pancadas” medonhas pelo destino ingrato, que espreita os minutos para nos surpreender com as suas garras impiedosas e os seus punhais afiados, que transpassam a carne e fazem sangrar os peitos mais fortes.
       Alguns naquela sala fria têm os olhos marejados e sentem o sofrimento, não da sua partida iminente, mas da vida de sofrimento que lhe fora imposta abruptamente nos últimos anos. Outros, contam histórias passadas em comunhão com ela e engolem um soluço sufocado na garganta, pela inércia da vida perante a morte. São tantos os destinos ignorados pela mão poderosa da surpresa, tão inerente aos dias que se sucedem inexoráveis e corridos.
       Queria tê-la conhecido. Quantas histórias aquela mulher não me teria ensinado? O frio da noite úmida arrepia a minha alma e a brisa sonolenta faz carícias no meu rosto triste. É chegada a hora das perguntas sem respostas. Ouvi tantas coisas a seu respeito... Poucos, certamente atreveram-se a irem visitá-la enquanto suspirava a solidão dos dias amargurados e das tantas noites insones que deve ter vivido. Quantas lágrimas não terão encharcado o seu travesseiro amarrotado pelo peso das dores que ela escondera sob ele, enquanto o seu corpo era sacudido pelos soluços nas frias madrugadas tantas?
       Continuo olhando o seu rosto magro e pálido. Resquício do que outrora foi. Suas mãos rijas, já não seguram os sonhos que deve ter se atrevido a sonhar agarrando-se a eles como salvação dos seus sofrimentos. E foram tantos! O tempo escapou-lhe por entre os dedos magros e sem forças fazendo-a gemer e ser espectro de si própria. Ninguém ouviu seu peito soluçar. Ninguém segurou a sua mão para amenizar as suas dores. Só o silêncio ouviu seu suspirar resignado. O seu cabelo coberto de neve não foi suficiente para fazer-se respeitar enquanto criatura. Virou só mais um leito ocupado.
       Lá fora, a noite é escura e o vento chora baixinho para não mais acordá-la. Não há estrelas para iluminar os caminhos. A lua deve estar quebrada em algum lugar do céu esperando o nascer de um novo dia, para que outras vidas ressurjam e outras novas histórias se possam contar. De quando em vez o céu chora um choro inóspito e frio, com remorsos da própria tristeza.
       Enquanto alguns enxugam os olhos num gesto estudado, o lar onde ela passou os últimos anos da sua vida exulta em alegria. Há agora, um lugar disponível para abrigar a próxima criatura que lá habitará doravante, para matar os poucos sonhos e morrer silenciosamente...
       Saio dali com o coração pesado e o estomago um pouco embrulhado, mas quem sou eu para julgar os homens de boa fé e de boa vontade? Piedade Senhor, eles não sabem o que fazem!
       Ela dorme agora, serenamente, o sono dos que padeceram na vida para descansarem num dia qualquer, de qualquer jeito, quando já não tinha vida qualquer...

                                                                               Lígia Beltrão

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