O cheiro de flores deixava o ar com um misterioso odor de morte. As velas
choravam o seu fogo derradeiro cumprindo a missão de alumiar a passagem daquela
criatura, desta vida para aquela que nós acreditamos ser a eterna (?). Jaziam
ali naquele caixão, todos os sonhos sonhados por ela numa vida e mortos a “pancadas”
medonhas pelo destino ingrato, que espreita os minutos para nos surpreender com
as suas garras impiedosas e os seus punhais afiados, que transpassam a carne e fazem
sangrar os peitos mais fortes.
Alguns naquela sala fria têm os olhos marejados e sentem o sofrimento,
não da sua partida iminente, mas da vida de sofrimento que lhe fora imposta
abruptamente nos últimos anos. Outros, contam histórias passadas em comunhão
com ela e engolem um soluço sufocado na garganta, pela inércia da vida perante
a morte. São tantos os destinos ignorados pela mão poderosa da surpresa, tão
inerente aos dias que se sucedem inexoráveis e corridos.
Queria tê-la conhecido. Quantas histórias aquela mulher não me teria
ensinado? O frio da noite úmida arrepia a minha alma e a brisa sonolenta faz
carícias no meu rosto triste. É chegada a hora das perguntas sem respostas. Ouvi
tantas coisas a seu respeito... Poucos, certamente atreveram-se a irem
visitá-la enquanto suspirava a solidão dos dias amargurados e das tantas noites
insones que deve ter vivido. Quantas lágrimas não terão encharcado o seu
travesseiro amarrotado pelo peso das dores que ela escondera sob ele, enquanto
o seu corpo era sacudido pelos soluços nas frias madrugadas tantas?
Continuo olhando o seu rosto magro e pálido. Resquício do que outrora
foi. Suas mãos rijas, já não seguram os sonhos que deve ter se atrevido a
sonhar agarrando-se a eles como salvação dos seus sofrimentos. E foram tantos! O
tempo escapou-lhe por entre os dedos magros e sem forças fazendo-a gemer e ser
espectro de si própria. Ninguém ouviu seu peito soluçar. Ninguém segurou a sua
mão para amenizar as suas dores. Só o silêncio ouviu seu suspirar resignado. O
seu cabelo coberto de neve não foi suficiente para fazer-se respeitar enquanto
criatura. Virou só mais um leito ocupado.
Lá fora, a noite é escura e o vento chora baixinho para não mais
acordá-la. Não há estrelas para iluminar os caminhos. A lua deve estar quebrada
em algum lugar do céu esperando o nascer de um novo dia, para que outras vidas
ressurjam e outras novas histórias se possam contar. De quando em vez o céu
chora um choro inóspito e frio, com remorsos da própria tristeza.
Enquanto alguns enxugam os olhos num gesto estudado, o lar onde ela
passou os últimos anos da sua vida exulta em alegria. Há agora, um lugar
disponível para abrigar a próxima criatura que lá habitará doravante, para
matar os poucos sonhos e morrer silenciosamente...
Saio dali com o coração pesado e o estomago um pouco embrulhado, mas
quem sou eu para julgar os homens de boa fé e de boa vontade? Piedade Senhor,
eles não sabem o que fazem!
Ela dorme agora, serenamente, o sono dos que padeceram na vida para
descansarem num dia qualquer, de qualquer jeito, quando já não tinha vida
qualquer...
Lígia Beltrão
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