quinta-feira, 15 de novembro de 2018

A Libitina


      
Seus olhos sonham equivocadamente através da neblina rude do escárnio da Libitina. Foi se habituando a olhar o tempo que vem incerto e tortuoso, confinando o humano dentro do vácuo de si mesmo. A gente se habitua a tudo, dizia para si mesmo. Ela, empertigada e intolerante esgarça as dobras do coração de qualquer um. Está sempre atenta a qualquer deslize das criaturas. Abocanha a sua presa com todos os dentes e mastiga tudo ao seu derredor. Leva o que é seu e que se dane o resto! Existe para isso. Transportar almas.
       Saiu à rua olhando para os lados a procura, não sabia de quê. Cumprimentou a vizinha com um sorriso. Por instantes esqueceu os pensamentos que assombravam a sua mente nos últimos dias. Precisava caminhar um pouco. Aliviar a tensão e o cansaço que sentia. Olhava as casas fechadas, os telhados mofados com enormes buracos pela falta de telhas, as paredes rachadas pedindo reforços urgentes, e as silvas se espalhando por todos os lados com a imponência dos seus espinhos. A vida treme nas pernas bambas das incertezas, pensava ela, enquanto olhava a pequena aldeia ir acabando lentamente e se enterrando no próprio descaso, abandonada por todos.
       Caminhava sem destino certo. Queria caminhar, só isso. Encontra pelo caminho uma ou outra pessoa, que fala com ela alegremente. Responde sempre educadamente. É simpática com todos, mas não lhe apetecia parar para conversar com ninguém. Sentia uma dor inexplicável na alma, e aquela era só sua, precisava senti-la para nada dever a aos seus tantos dias de vida.
       Ainda há vida em alguns olhos baços das matas ressequidas. Não cuidam mais de nada e tudo vai desmaiando de solidão por aqueles campos que um dia, não muito distante, já foram plantações que mataram a fome de todos. Ela engole um soluço sufocado e apressa o passo. Tem pressa de voltar, mesmo sem saber por que. O sol cobre de dourado os picos das serras ao derredor, fazendo descer fachos de luz pelas ruas silenciosas, vestindo o dia de um amarelo pálido. O tempo parece estar doente e passa sem a sua permissão, para que ela possa entender a sua pequenez neste mundo.
       Não ouvia os sons externos, pois os seus ruídos vinham de dentro. Enxugou uma lágrima disfarçadamente. Estará sozinha nesta explosão interior? Os terrenos baldios vigiam de olhos tristes os seus passos ansiosos. A brisa sussurra timidamente para não atrapalhar a intimidade daquele encontro dela com ela mesma. Há cheiro de lavanda no ar. Deteve a caminhada, pois o sino da pequena capela solitária dobra-se agora, tristemente, anunciando uma saudade.
       Volta pelo mesmo caminho com o coração sangrando pelos olhos. Não consegue conter aquele mar salgado que se derrama em seu rosto. Arruma os óculos escuros para esconder-se do instante e caminha ainda mais apressada. De longe já vê movimento na capela e segue para lá. As pessoas vão chegando de cabeça baixa, cumprimentam-se sem saberem o que dizer. Fora, formam pequenos grupos para falarem e recordarem daquele que fez história no lugar. Era amigo dos amigos. Nunca seria esquecido. Aquele seu jeito com todos fizera dele criatura especial. Ela não queria, mas foi mais forte, olha o seu rosto magro e agora sereno. Nada mais há a dizer. Só um adeus mudo sai do seu coração sofrido. Volta-se e sai do velório em direção à vida. Pensa em como é Divino viver. Está na mesma fila esperando a sua vez... A vida fragmentada, ainda pulsa nas suas veias. Haverá de juntar os retalhos, com o tempo.
       A sua dor agora estava estagnada em anódinos murmúrios.


(*) Lígia Beltrão é cronista do jornal O Columinho e atualmente mora em Portugal

Nenhum comentário:

Postar um comentário