POR SÉRGIO TAVARES
“Verão”, conto de Julio Cortázar, tem início com a chegada de uma menina numa cabana afastada no campo. Seu pai precisa resolver um assunto urgente na cidade, portanto a deixa sob cuidados dos únicos amigos a quem pode recorrer, apesar da distância e do difícil acesso. A criança é quieta, passa o dia lendo, totalmente alheia ao vaivém dos adultos no cumprimento das tarefas domésticas. Após a ceia, vai dormir, enquanto o casal adia o sono para beber e ouvir música. É aí que coisas estranhas passam a acontecer.
O autor argentino usa do procedimento que se tornou sua marca registrada para trabalhar o insólito: a incorporação do espanto na rotina sem que a causa ou o elemento estressor seja claramente decifrado. O mistério está sempre protegido por uma escrita ambígua, que escala a tensão, abre possibilidades interpretativas, ao mesmo tempo que mantém intacto o núcleo do relato não dito, o que se oferece apenas como um jogo de sugestão. O incomum, talvez sobrenatural, dá as caras aqui e acolá, e nunca se sabe se essas aparições extraordinárias têm origem no que se pode explicar ou não. Terminada a narrativa, permanece sempre a incerteza no leitor desconcertado.
Esses módulos de recordações fazem parte, na maioria das vezes, de um eixo que demonstra um empenho circular. O presente que parece refém de consequências do vivido nas quais não está diretamente filiado, mas que se desdobra de maneira irrefreável para dentro de si. Em “Houdini”, uma professora vê a situação de orfandade de uma aluna resgatar passagens da própria infância marcada também pela ausência. Aqui, o expediente de insinuações se amplia, detalhando certas condutas que dão conta de um ambiente social opressor sem precisar nomeá-lo. O recurso evocativo também retorna na analogia entre a mágica do desaparecimento e as desaparições de presos políticos.
“Cata-vento” e “Domenico” são narrativas audaciosas, que revelam o grau de risco a qual se propõe o autor. Tramas de emaranhados densos, repletas de variações e chaves de interseção, apresentando uma sofisticada engenharia no desenho de biografias ficcionais. Vozes que se revezam, sobrepõem-se ou se calam em tempos distintos, costurando fragmentos que dão conta de formular o cenário de uma vida. Fica claro, a essa altura, a intenção calculada de regular o ritmo num tom mais controlado, um processo criativo que visa a experiência participativa na concatenação de pistas soltas e rumos abertos de modo a se imaginar um ou mais finais possíveis. A técnica é muito presente, embora nunca expositiva. O traço estilístico e a lapidação das frases têm o compromisso de estimular a curiosidade no enredamento das situações sugeridas.
O próximo “Míchkin” destoa do padrão do conjunto ao incorporar um componente cômico. Um adolescente abobalhado recebe a visita inesperada de dois discípulos da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias e, enquanto ouve a graça de Joseph Smith, o fundador da religião, solta observações sobre o plano metafísico baseadas em referências da cultura pop. Há a dinâmica de entrecruzamento de histórias, porém sem a refinada complexidade, ainda se buscando um comentário social. “A carta” emula a prosa epistolar no testemunho de saudade de um jovem soldado para a mãe. Outra vez a estratégia da narração cifrada aparece, dando conta de detalhes particulares, por vezes circunstanciais, que subentendem todo um pano de fundo histórico, uma narrativa elusiva que põe à prova a própria intenção do discurso.
Os contos finais se afinam a esse caráter multifário de tramas que se bifurcam em duas ou três histórias que não necessariamente se resolvem, que muitas vezes dialogam entre si sem precisar firmar fechos de conexão. Tenório efetua manobras de grande habilidade ao instar elipses e alusões sem que isso atrapalhe o entendimento geral de seus enredos. Um livro a ser lembrado quando se iniciar a corrida dos prêmios literários.
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