A Pesar de ser reconhecido internacionalmente por seus esforços de combate à chamada escravidão moderna, o governo brasileiro está há dois anos sem divulgar a lista do trabalho escravo - uma relação dos empregadores flagrados e condenados em processo administrativo por usar trabalho análogo ao escravo no país.
Suspensão da lista abriu espaço para que empresários e produtores que usam trabalho escravo fiquem fora do radar da sociedade, diz especialista
A lista foi suspensa pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski em 22 de dezembro de 2014, em meio ao recesso de fim de ano da corte, mas teve sua divulgação permitida pela ministra Cármem Lúcia em maio de 2016.Até agora, no entanto, o Ministério do Trabalho não voltou a publicá-la.
Cansado de esperar, o Ministério Público do Trabalho (MPT) entrou na semana passada com uma ação judicial pedindo a publicação imediata da lista. Uma liminar da Justiça do Trabalho agora obriga o ministro do trabalho, Ronaldo Nogueira, a divulgar os nomes, de acordo com a nova portaria, até 30 dias depois de ser notificado.
"Desde maio há uma omissão deliberada por parte do governo. Não há nenhuma razão para não publicação da 'lista suja'", disse à BBC Brasil Tiago Cavalcanti, coordenador da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, órgão ligado ao MPT.
"Estamos tentamos contato com o Ministério pedindo isso desde agosto. Eles propuseram a criação de um grupo de trabalho para repensar a lista, mas só criaram agora, depois da nossa ação. Chegamos à conclusão de que eram respostas evasivas e com cunho procrastinatório."
Ao mesmo tempo em que o MPT entrava com uma ação judicial pela publicação da lista, o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a indenizar um grupo de 128 trabalhadores rurais submetidos a condições de escravidão no Pará.
Em seu primeiro caso sobre escravidão moderna, o tribunal internacional determinou que o governo foi conivente com o trabalho escravo na fazenda de criação de gado Brasil Verde e deverá pagar cerca de US$ 5 milhões aos trabalhadores.
Política de Estado
A lista, que começou a ser publicada em 2003, é considerada um dos principais instrumentos de combate ao trabalho escravo no Brasil - e, segundo especialistas internacionais, um modelo a ser seguido por outros países.
A partir dela, empresas e bancos públicos podem negar crédito, empréstimos e contratos a fazendeiros e empresários que usam trabalho análogo ao escravo.
A chamada escravidão moderna atinge mais de 45,8 milhões de pessoas no mundo, segundo a edição mais recente do Índice Global de Escravidão, publicada pela Fundação Walk Free, da Austrália, divulgada em junho de 2016.
No Brasil, a Walk Free estima que sejam 161,1 mil os trabalhadores em condições análogas à escravidão. Em 2014, eram 155,3 mil.
"Divulgar este cadastro é uma política de Estado, e não de governo. As políticas de combate ao trabalho escravo começaram no governo FHC e (foram) continuadas nos governos Lula e Dilma. Ela não depende de contornos ideológicos e partidários. Se esta for uma decisão com cunhos ideológicos, não pode prevalecer", afirmou Cavalcanti.
Procurado pela BBC Brasil, o Ministério do Trabalho não respondeu aos questionamentos até o fechamento desta reportagem.
Novas regras
O ministro Lewandowski decidiu pela suspensão da lista respondendo a uma ação da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), organização que reúne algumas das principais empreiteiras do país.
Entre as construtoras que fazem parte da associação estão Andrade Gutierrez, Moura Dubeux e Odebrecht, denunciada pelo Ministério Público do Trabalho por uso de trabalho escravo após .
A Abrainc questionava a exposição das empresas condenadas e dizia que a portaria do Ministério do Trabalho não deixava espaço suficiente para a defesa dos empregadores.
Desde então, a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), órgão do ministério, vem tentando reativar a publicação. Em março de 2015, uma tentava "driblar" a decisão do STF, baseando-se na Lei de Acesso à Informação para divulgar os nomes.
Mesmo assim, a ministra Cármem Lúcia, que estava encarregada da decisão final sobre o tema, considerou que a liminar de Lewandowski continuava a impedir a divulgação.
Em maio, pouco antes de deixar o governo, a presidente Dilma Rousseff assinou uma nova portaria sobre a lista, determinando que o documento passaria a ter duas relações diferentes de empregadores, que seriam publicadas de uma só vez.
"É como se fossem duas listas em uma", explica Tiago Cavalcanti. De um lado estarão empregadores que foram condenados e admitiram o erro, comprometendo-se a corrigir sua cadeia produtiva. De outra, os que não o fizeram.
"Quando a empresa é autuada pelo flagrante de trabalho escravo, começa um processo, a empresa recorre e esse processo é julgado pelos ministérios do Trabalho e da Justiça. Quando há uma decisão e a empresa é condenada, o nome dela vai para a lista", diz o procurador.
"Mas, se durante esse processo, o empregador assinar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) e fizer acordos no âmbito da Justiça do Trabalho, o nome dele vai para outra lista, porque se ele comprometeu perante a justiça a corrigir os problemas."
Após a nova resolução, a ministra do STF determinou a perda de objeto da ação da Abrainc, afirmando que os problemas apontados pelo órgão haviam sido resolvidos com as novas normas.
Pressão
Para especialistas entrevistados pela BBC Brasil, a pressão da bancada ruralista e de congressistas ligados ao empresariado pode ser um dos fatores que explicaria o atraso da lista.
Segundo o Código Penal Brasileiro, o trabalho análogo ao escravo é caracterizado por quatro elementos, que podem ser comprovados juntos ou isoladamente: condições degradantes de trabalho, que coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador; jornada exaustiva, em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga; trabalho forçado, em que a pessoa é mantida no serviço através de fraudes, isolamento geográfico ou ameaça e violência e servidão por dívida, em que a pessoa é forçada ilegalmente a contrair uma dívida e trabalhar para pagá-la.
Mas pelo menos três projetos de lei, em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado, querem retirar os termos "jornada exaustiva" e "condições degradantes de trabalho" desta definição.
Um deles, PL 3842/2012, foi aprovado na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento Desenvolvimento Rural em abril e aguarda votação no plenário da Câmara.
O deputado Moreira Mendes (PSD-RO), autor do projeto, defende que as duas expressões são "muito amplas".
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