Por José Nêumanne Pinto*
Parece que o presidente Jair Bolsonaro ainda não percebeu. Mas conseguiu um feito pelo avesso, que antes era impossível de ser imaginado: ao estrebuchar (e não apenas espernear) contra Celso de Mello e Alexandre de Moraes, ele uniu o Supremo Tribunal Federal (STF), que até agora parecia fadado a uma eterna divisão em seis a cinco. Espectadores atentos de entrevista do ministro Gilmar Mendes à GloboNews, domingo, notaram o tom respeitoso e prudente dele ao se referir ao desafeto jurado Luís Roberto Barroso. E, fora do convívio no “pretório excelso”, tratou o alvo favorito de seus vitupérios, o ex-ministro Sergio Moro, usando palavras e modos educados em tom cordial, imaginem.
No sábado, o “capitão cloroquina” foi alvo de uma saraivada de pitos jurídicos do normalmente polido decano do STF, que dias antes fora execrado em nota estúpida do chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, general Augusto Heleno Ribeiro. O procurador egresso de Tatuí, cidade paulista conhecida pelos pendores musicais de seus filhos, normalmente autor de votos longos e barrocos, usou uma linguagem direta (e até desabrida) contra o dito magistrado número um da República, chegando a abusar de letras capitais, que em internet, correspondem a gritos. Na mensagem, dirigida a amigos pelo WhatsApp, comparou os disparates verbais de seu recente oponente ao comportamento do maior vilão do século 20, o michê austríaco Adolf Hitler, responsável pelo maior malogro da reputação de bons soldados dos alemães, ao mergulhar numa aventura insana declarando guerra ao mundo.
Mello, relator do inquérito pedido pelo procurador-geral da República, o chapinha Augusto Aras, para investigar acusações que Moro fez a Bolsonaro, afirmou que, guardadas as proporções, “parece estar a eclodir no Brasil” o “ovo da serpente, à semelhança do que ocorreu na República de Weimar (1919-1933) … É PRECISO RESISTIR À DESTRUIÇÃO DA ORDEM DEMOCRÁTICA, PARA EVITAR O QUE OCORREU NA REPÚBLICA DE WEIMAR”, lembrando que, eleito chanceler, o nazista rompeu com a democracia, rasgando a Constituição de Weimar e “impondo ao país um sistema totalitário de poder”. Antes, Sua Insolência decretara “acabou, porra!”, referindo-se a outro ministro do STF, Alexandre de Moraes, que mandara fazer buscas e apreensões em gabinetes, escritórios e residências de bolsonaristas suspeitos de executarem assassinatos de reputações de ex-aliados e inimigos do chefão. Aos berros, como costuma se dirigir a interlocutores reais e imaginários, havia dito que ordens absurdas da Justiça não devem ser cumpridas.
De fato, há semelhanças entre o autogolpe do primeiro-ministro da República de Weimar e o projeto de poder total de Bolsonaro. Derrotada numa guerra que iniciara para realizar um projeto de conquista territorial, humilhada pelo Tratado de Versalhes e empobrecida, a antes próspera e orgulhosa Alemanha achou no artista frustrado a oportunidade para a revanche contra os tradicionais inimigos franceses e britânicos. À saída da crise, provocada pela roubalheira das lideranças políticas, o Brasil elegeu um presidente para afastar o PT do poder e dar continuidade ao combate à corrupção. Como Hitler, Bolsonaro teve a ascensão facilitada pela covardia das elites civis, pela ganância de um empresariado viciado em boa vida e pela oportunidade dada aos militares de recuperarem o orgulho ferido pela imagem destroçada por práticas abomináveis contra civis indefesos.
Parlamentar do baixíssimo clero por 30 anos, com desempenho para o qual a definição de medíocre equivale a uma medalha de demérito, cujo ponto alto foi a aprovação da maior picaretagem da medicina no País, a “pílula do câncer”, o negacionista, terraplanista e armamentista é produto e objeto de vários enganos. Um deles é sua falsa veneração pela ditadura militar, retratada na parede de seu gabinete na Câmara dos Deputados com as fotos oficiais dos cinco generais que ocuparam o poder nos 21 anos de tirania. Não é segredo para ninguém que sua saída do Exército foi negociada para evitar um escândalo. Pilhado na realização malsucedida de um atentado à bomba em quartéis e na adutora do Rio Guandu pela pouco altruísta causa do aumento do próprio soldo, foi corretamente definido por Geisel como “mau militar”, em documento histórico de valor inegável.
O general tinha motivos razoáveis para dar a definição, pois sabia do pendor terrorista e do comportamento indisciplinado do oficial. “Revolucionário” em 1930 e 1964, o quarto presidente da ditadura tinha também um desconfiômetro aguçado. O herói militar do capitão era o coronel Brilhante Ustra, torturador e assassino que homenageou ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff. Outro altar em seu panteão era de Sebastião Rodrigues de Moura, vulgo Major Curió, recentemente celebrado em seu gabinete e que sempre se jactou de ter executado com a própria pistola cinco guerrilheiros presos, manietados e desarmados do PCdoB, na insana aventura da revolução comunista que seria deflagrada dos confins do vale do Rio Araguaia, no Centro-Oeste do Brasil. A dupla participou de uma das tentativas de golpe mais ridículas da História do Brasil. Eram fiéis discípulos do general Sylvio Frota, ministro do Exército de Geisel e que tentou impor o próprio nome à sucessão presidencial, mas foi preterido em benefício de João Figueiredo. Ustra e Curió eram dois dos 12 oficiais mandados por Frota ao aeroporto de Brasília para esperar os comandantes dos Exércitos, mas não conseguiram, porque foram ludibriados pelo general Fernando Bethlem, que também era frotista, mas aceitou substituir o malogrado sedicioso no Ministério do Exército.
Também fazia parte do golpe malogrado o capitão Augusto Heleno Ribeiro de Almeida, que era ajudante de ordens de Frota e fez parte dos apóstolos enganados pelo ex-parceiro na recepção aos comandantes. Esse, contudo, não é o único momento polêmico da vida do oficial. Ele foi condenado pelo Tribunal de Contas da União por irregularidades na compra de equipamentos para um torneio esportivo do Exército. Foi também substituído no comando da tropa da ONU no Haiti por ter comandado um massacre num bairro miserável de Porto Príncipe. Desde então, tem o então presidente Lula na pior conta. O que não o impediu de aceitar fazer parte da equipe do Comitê Olímpico Brasileiro, que, presidido por Arthur Nuzman, participou da escolha do Rio para sediar a Olimpíada de 2016. E só deixou o emprego no dia em que o chefe foi preso, ao ser flagrado no escândalo de corrupção de que resultou tal decisão.
O signatário da nota grosseira ameaçando com “consequências imprevisíveis” o fato de Celso de Mello ter mandado apreender o celular do amado chefe (o que é falso), completa, então, a constatação de que a nostalgia de Bolsonaro pela “gloriosa revolução de 1964” não passa de uma farsa. Faltou uma fotografia na parede do gabinete do deputado multipartidário na Câmara: do golpista fracassado Sylvio Frota.
É louvável a bravura com que Mello tem defendido a democracia do autogolpe que Bolsonaro pretende dar, mas nega, alegando que não teria sentido fazer a ruptura (como anunciou seu filho Eduardo, o 03) por já estar no poder. Há, é claro, inúmeros exemplos disso na História, tais como Hitler, Mussolini e Getúlio Vargas. Pois a própria palavra que indica golpe em si mesmo não teria sentido se alguém não recorresse a esse extremo em busca do poder absoluto, como Jânio Quadros tentou, e fracassou, em 1961.
Mas o empregador de parentes de milicianos, defensor de mentiras fascistoides e de armar o povo para se defender da “ditadura” de seus inimigos se inspira em ídolo mais próximo. Em entrevista a este Estadão em 1999, disse que o bolivariano Hugo Chávez era uma “esperança para a América Latina” e gostaria muito que essa filosofia chegasse ao Brasil, “Acho ele (sic) ímpar. Pretendo ir à Venezuela e tentar conhecê-lo. (…) Chávez não é anticomunista e eu também não sou. Na verdade, não tem nada mais próximo do comunismo do que o meio militar”. Para ele, o venezuelano o “remetia ao marechal Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura militar. “Acho que ele vai fazer o que os militares fizeram no Brasil em 1964, com muito mais força. Só espero que a oposição não descambe para a guerrilha, como fez aqui”, completou.
Em 2002, confessou ter votado em Lula. E indicou para ministro da Defesa José Genoíno e Aldo Rebelo, ambos do PCdoB e que sobreviveram ao Major Curió. Esse é o típico chute ideológico de nossa direita chula, com tochas e máscaras como seus inspiradores da Ku Klux Klan cabocla, os 30 que se dizem 300 de Esparta e marcharam sábado, em Brasília.
*Jornalista, poeta e escritor
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