sexta-feira, 26 de abril de 2024

‘O ‘playboy’ desconhecido parou o trânsito do Rio para salvar minha menininha que estava em convulsão’



De O Globo – Ana Virginia Pinheiro conta sobre como a bondade de um desconhecido salvou sua filha. Numa noite chuvosa de sexta-feira em 1991, a vida de Ana Virginia Pinheiro e de sua família mudou para sempre. Sua filha pequena, de apenas 1 ano e 4 meses, entrou repentinamente em convulsão em seu apartamento no Rio de Janeiro.

Confira a história desta semana, enviada por Ana Virginia Pinheiro:

“Aconteceu numa noite de sexta-feira, em 1991. A rua Pinheiro Machado, engarrafada, prometia acesso mais rápido entre o centro, a zona norte e a zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Buzinas ansiosas preconizavam os prazeres de uma noitada esperada.

Minha menininha de um ano e quatro meses via TV no quarto, com o pai, enquanto eu lavava alguma coisa na pia do banheiro. De repente, um chamado. Fui até o quarto e a encontrei indiferente ao vômito que a rodeava. O que foi, o que foi? Não sei. Ela se sentou e vomitou. Peguei minha menina no colo e corri para o chuveiro. Há algum tempo, ela sofreu uma convulsão febril e, agora, parecia ser igual. Mas, não havia febre. Ela ficou em pé, no box, com o olhar perdido e a mãozinha aberta sob o gotejamento do chuveiro. Liga para a pediatra, gritei. Ligação feita, ordem imediata: enrola ela num lençol e leva, agora, para o pronto socorro infantil.

O pronto socorro mais próximo ficava a cerca de mil metros, menos de cinco minutos, de carro, num trânsito regular. Mas, naquela sexta de noitada, o trânsito não era regular. Não lembro como entrei no elevador, como saí na portaria do prédio, como cheguei no carro. No carro, pai no volante, desnorteado; eu, uma mãe desesperada, no banco do carona, com sua bebezinha no colo; o irmãozinho de três anos, sonolento, no banco de trás. A pista era de mão dupla. A primeira pista, no lado contrário ao destino, estava tranquila; tanto que sob buzinas pretensamente educativas e algum achincalhe, o pai atravessou a pista e parou o carro no canteiro que separava as duas mãos.

Era uma época em que os motoristas não usavam cinto de segurança e dirigiam com uma mão no volante e a outra numa lata de cerveja. Os carros, embolados, desordenados, estavam cheios de gente arrumada, ar-condicionado no máximo, faróis altos, sons a pleno. A chuva apertou. O carro não conseguia sair do canteiro. Abri o vidro da janela do carona: socorro, socorro! A chuva molhava meus braços, meu rosto e minha menininha, que parecia desacordada. O meu olhar, em prantos, encontrou o olhar de um rapaz de vinte e tantos anos, no volante de um carro “de playboy”, com uma moça linda, no banco do carona. Olhos nos olhos, rosto encharcado de lágrimas e chuva, voz embargada e desesperançada: socorro, socorro!

Não sei como, mas, o carro “de playboy” furou o paredão de metal, luzes e sons; seus pneus cantaram; parou atravessado na pista, sob buzinas escandalosas e impropérios de ocasião, desenhando um vão por onde só passava um carro. O motorista, vidro aberto, braço para fora, boca aberta, aflito: passa, passa! O pai, aos trancos e barrancos, saiu do canteiro arrastando a lataria, meteu o carro no vão e avançou uns quinhentos metros. Foi o que deu, porque o engarrafamento tomava a rua, os semáforos abriam e os carros avançavam.

Nesse momento, minha menininha entrou em convulsão. Sua cabecinha batia no meu peito, seu corpinho tremia. Abri o vidro todo do meu lado, pensei em descer e correr com ela no colo, sob a chuva, entre os carros: pelo amor de Deus, socorro, socorro! Nenhum pedestre, ninguém me ouvia. O pai, nervoso, mal discernia. Meu menininho, deitado no banco de trás, dormia. De repente, quase um cavalo de pau: o mesmo carro, de novo, atravessado na rua, e o mesmo motorista, agora, seguro de si qual Bruce Lee, esticou um dos braços e, flexionando e estendendo rapidamente os dedos juntos, sinalizou para a única abertura que deixou na pista.

Depois, pelo retrovisor, vi o carro ainda lá, parado, trancando a rua, até perdê-lo de vista. Entrei, no pronto socorro, aos gritos, enquanto o pai e o irmãozinho buscavam por estacionamento. O socorro veio com um diagnóstico: ataque epilético. Não sabia que bebês podiam ter. Não havia baba. Os médicos relataram o ataque por escrito e orientaram pela busca de um neuropediatra no dia seguinte, de manhã. Passei a madrugada em vigília, exausta, pesquisando num catálogo de convênio médico por especialistas que atendessem aos sábados sem agendamento. Encontrei. De manhã, cedinho, estava no telefone, discando números de esperança por atendimento. Consegui.

Isso foi há mais de 30 anos. Minha menininha é, hoje, uma mulher saudável. Trabalha com tecnologias de informação com uma quase incrível capacidade de antever causas e efeitos em estruturas sistêmicas.

De vez em quando, como agora, lembro daquela noite chuvosa de sexta-feira. Penso no motorista do carro de “playboy” com sua linda acompanhante. Não lembro das fisionomias, nem da marca do carro – o motorista, a moça e o carro formam um só personagem, reluzente, na minha memória.

Penso nisso como uma história rara, que ainda me emociona, sobre alguém que colocou em risco a própria vida para fazer o bem sem ver a quem. Uma história rara de amor, de um casal de desconhecidos que me ajudou a salvar minha menininha, que pode ter garantido o rumo da minha história para a felicidade e que, ainda hoje, me faz acreditar que o amor verdadeiro ao próximo é possível, é real.”

Por Ana Virginia Pinheiro

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