domingo, 20 de novembro de 2022

Copa do Qatar é a mais vexaminosa desde a da Argentina-1978


Por Tales Torraga, do UOL — A Copa do Mundo de 2022 começa hoje (20) no Qatar prometendo ser a mais ruidosa fora de campo desde a da Argentina, em 1978.

Há 44 anos, o Mundial foi conduzido pela junta militar, enquanto os problemas de agora são de outra ordem: acusações de trabalho análogo à escravidão na construção dos estádios, preconceito contra as pessoas LGBTs e um “embargo comercial” com a proibição da venda de cerveja no entorno dos estádios.
Desde aquela Copa conquistada pela Argentina em casa, outros dez Mundiais foram disputados (o 11º começa hoje).

Controverso para sempre

A influência da ditadura militar na conquista do primeiro título mundial da Argentina talvez seja o assunto mais controverso e problemático da história do esporte no país.

Há indícios de sobra para acreditar que a junta comandada pelo general Jorge Rafael Videla trabalhou ativamente para que o país saísse vencedor em 1978, recorrendo a práticas nefastas e colocando o futebol o serviço do terror.

Graças à euforia provocada pelo triunfo, muitas das atrocidades do regime seriam ocultadas, ainda que temporariamente. Por outro lado, é inegável que o time de César Luis Menotti, jogando em casa, seria legítimo candidato ao título com ou sem a obscura interferência dos militares.

Seja como for, resta uma conclusão inescapável: a de que a Copa de 1978 foi, sim, manchada —e de sangue.

O Mundial aconteceu no terceiro ano do chamado “Processo de Reorganização Nacional”, o ridículo eufemismo adotado pelos militares para classificar o período ditatorial mais pavoroso já visto pelos argentinos.

O golpe de 1976 derrubou a presidente Isabelita Perón (elevada ao cargo depois da morte de Juan Domingo Perón, em 1974) e instalou em seu lugar um governo homicida, que perseguia seus opositores de maneira impiedosa.

Vários outros regimes autoritários já tinham usado o esporte para atingir seus objetivos políticos, mas poucos tomaram proveito de um evento esportivo com tamanha voracidade quanto os generais argentinos daquela época, de acordo com o livro “Copa Loca”. Lançada em 2018 no Brasil pela editora Garoa Livros, a obra disseca todas as participações da Argentina em Mundiais.

A Argentina na Copa do Mundo de 1978

Tortura ao lado do estádio

“Enquanto os gols eram festejados, os gritos dos torturados e desaparecidos eram abafados”, resume Estela de Carlotto, uma das avós da Praça de Maio, no documentário “A história paralela”, que se debruça sobre aquele doloroso período.

Apenas dois quilômetros separavam o Monumental de Núñez, grande palco daquela Copa, do principal centro de tortura do regime, instalado no complexo da Escola Superior de Mecânica da Armada, a Esma, hoje transformada em completo memorial sobre os crimes cometidos no período.

Ali ficavam detidas as futuras vítimas dos chamados “voos da morte”, em que prisioneiros políticos eram embarcados em aviões militares e lançados em alto-mar.

Os presos da Esma, submetidos aos mais variados abusos, ouviam o alarido do estádio a cada gol marcado pela seleção, especialmente na finalíssima contra a Holanda, quando a Argentina foi campeã com um 2 a 0 na prorrogação, depois do 1 a 1 no tempo normal.

No exterior, as ações da junta militar argentina causavam aflição e repulsa, mas nenhuma seleção abriu mão de sua vaga na Copa. Videla tinha um aliado dos mais poderosos: o brasileiro João Havelange, presidente da Fifa, que jamais colocou em dúvida a realização do torneio na Argentina.

Durante muito tempo comentou-se em Buenos Aires que Havelange fora presenteado pelo general com valiosos terrenos no interior do país, levando o cartolão a reafirmar seu apoio ao país-sede. Havelange morreu negando essa e todas as outras numerosas suspeitas de corrupção que pesavam contra ele.

Depois de quase meio século de espera para sediar um Mundial e conquistar sua primeira taça, a Argentina enfim concretizaria esses sonhos no frio e tenso junho de 1978. O legado daquela conquista é incrivelmente complexo —e, 44 anos depois, segue assombrando o imaginário argentino.

A chance de vencer a Copa em casa e espalhar um clima de entusiasmo pelo país era mais do que oportuna para os militares, mas a escolha do país-sede não havia sido tramada pelo general Videla e seus cúmplices. Quando a decisão foi tomada, no Congresso da Fifa em julho de 1966, em Londres, a Argentina tinha acabado de sofrer outro golpe, pelas mãos da geração anterior de lideranças fardadas. Nos doze anos entre a eleição da sede (com a Argentina como candidata única) e a realização do torneio, o país teve mais dois líderes militares e quatro chefes de governo civis.

Um deles, aliás, teria inspirado o logotipo daquela Copa. O desenho lembra o gesto mais emblemático de Juan Domingo Perón ao saudar seus seguidores, erguendo os dois braços sobre a cabeça. A ilustração foi criada em 1974, ano da morte do caudilho. Depois do golpe de 1976, a junta militar assumiu o comando da organização do torneio. Os generais sabiam que a ilustração poderia ser vista como apologia ao peronismo e procuraram a Fifa para tentar trocar o desenho, mas era tarde demais. O logotipo já tinha sido estampado em diversos produtos licenciados e qualquer alteração faria com que os parceiros comerciais da Copa acionassem o país-sede nos tribunais

A Copa na televisão brasileira: 1978, quando os telões reuniram o povo

Mortes até entre os organizadores

O primeiro militar encarregado da organização do evento, general Omar Actis, foi encontrado morto pouco depois de assumir o cargo, num crime atribuído à feroz briga interna pelo poder na fase inicial do regime. O general-de-brigada Antonio Merlo e o contra-almirante Carlos Alberto Lacoste foram os escolhidos para seguir com os preparativos.

Calcula-se que o governo tenha torrado entre US$ 500 e US$ 700 milhões com o Mundial, mas o valor final e oficial da empreitada jamais foi divulgado. O próprio ministro da Fazenda da época, Juan Alemann, confirmaria anos depois que as obras para o evento foram grosseiramente superfaturadas, transformando aquela Copa num verdadeiro banquete de corrupção.

(A Espanha realizaria a edição seguinte do torneio por um aproximadamente um quarto do custo estimado pelos argentinos.)

A roubalheira, porém, acabaria sendo a menor das barbaridades do regime na realização do Mundial. Com os holofotes voltados para a Argentina, Videla deixou claro à hierarquia militar que era preciso manter o controle do país a todo custo. Qualquer prenúncio de dissidência deveria ser prontamente sufocado.

Nos meses que antecederam o evento, a perseguição aos opositores do regime foi ainda mais truculenta. E os atos arbitrários dos generais afetariam não apenas os envolvidos na luta política, mas também personagens do próprio Mundial.

Entre os temas que seguem provocando inesgotáveis debates quando se trata daquela Copa, um é especialmente espinhoso: até que ponto os jogadores sabiam da matança praticada pela ditadura e, caso soubessem, como deveriam agir diante de uma convocação para defender seu país?

Para o principal líder daquela seleção, a resposta marcaria todo o resto de trajetória. O lateral-esquerdo Jorge Lobo Carrascosa, então com 29 anos, era titular indiscutível e capitão da Argentina desde 1975. Teve seu nome incluído por César Luis Menotti na lista de inscritos enviada à Fifa em maio de 1978, a poucas semanas da estreia. Menotti telefonou para avisá-lo. Sua resposta: “Não vou, César”.

No futebol argentino dos anos 1970, Carrascosa era uma não apenas uma referência técnica, mas também moral. Ídolo de Banfield, Huracán e Rosario Central, unia a qualidade como atleta a um intelecto brilhante.

Foi um dos jogadores mais cultos a pisar nos gramados portenhos. De ética inegociável, já havia se desiludido com a seleção no Mundial anterior, depois que a Argentina mandou uma “mala branca” à Polônia. “Aquilo me caiu muito mal. Desvirtuou a essência do esporte. Nunca vou me prestar a isso.”

Seu exemplo de conduta seria importantíssimo no Mundial de 1978, em que a seleção teria de lidar com a tensão de carregar nos ombros a expectativa de um país todo (e também dos generais assassinos liderados por Videla).

À medida em que a Copa se aproximava, ficava claro que os militares pretendiam usar e abusar do evento para desviar o foco da matança às escuras nos porões da ditadura. Carrascosa não aceitava compactuar com aquela estratégia.

“Não podia ir a um Mundial com todas as coisas que aconteciam no país”, diria ele. “A vida passa por coisas mais importantes que o futebol.”

Menotti contaria anos depois que acreditava que Carrascosa acabaria indo à Copa caso ele continuasse insistindo, em nome da lealdade aos companheiros de seleção. “Mas que direito eu tinha de fazer algo assim? Conhecendo a honestidade dele, eu não seria capaz de manobrar para impedir sua saída”, escreveu o técnico no livro “Como ganamos la Copa del Mundo“.

Carrascosa jamais aceitou se estender no assunto, abordando-o em pouquíssimas entrevistas. Mais que isso, optou pela reclusão: jogou mais apenas uma temporada e se aposentou, fugindo das câmeras e dos microfones.

De acordo com os amigos, trata-se de respeito aos antigos colegas – afinal, gabar-se em público da recusa em ser cúmplice do regime implicaria em condenar a postura dos amigos que aceitaram ir à Copa. Depois de um exílio voluntário em Mar del Plata, foi morar em Adrogué, nos arredores da capital, onde passou a trabalhar com seguros. Continua preferindo o silêncio ao ser questionado sobre 1978.

Com a ausência de Carrascosa – que foi ao estádio em apenas uma partida do Mundial, contra a Itália -, Daniel Passarella herdou a braçadeira de capitão e o status de principal líder do grupo, ganhando de bandeja o privilégio de ser o encarregado de levantar a taça depois da final contra a Holanda.

Os vice-campeões, aliás, também jogaram desfalcados de seu costumeiro capitão naquele Mundial. Durante anos, a versão corrente dava conta de que Johan Cruyff ficara na Europa porque repudiava a ditadura argentina. Falava-se também em atrito com a federação holandesa, especificamente por causa de dinheiro. Nada disso: em 2010, numa entrevista à rádio Catalunya, a principal engrenagem da Laranja Mecânica revelou que uma invasão de assaltantes armados ao seu apartamento em Barcelona havia provocado um trauma em sua família. “Era o momento de colocar o futebol de lado. Não podia jogar um Mundial depois daquilo.”

Isso não quer dizer que Cruyff não tenha lamentado a ausência na Copa.

Em sua autobiografia, o gênio da camisa 14 diz acreditar que a Argentina não teria sido campeã caso ele tivesse ido à Copa. “Passou pela minha cabeça que, estando ali, minha carreira talvez terminaria com a conquista do título mundial. Senti que poderia conseguir. Me peguei pensando: como gostaria de ter estado em campo… Foi tudo muito estranho e triste.”

Com a conquista do título, seria de se imaginar que os heróis da seleção tivessem seu valor reconhecido pelo regime, mas os generais não fizeram questão alguma de agradar os campeões.

Ex-goleiro Pato Fillol visita a Gávea em 2018

Pai de Fillol foi espancado

Ao contrário. Ubaldo Fillol, por exemplo, foi ameaçado de morte poucos meses depois do Mundial – e por ninguém menos que o almirante Lacoste, que além de manda-chuva da organização da Copa também exercia seu poder no River Plate.

Em janeiro de 1979, Lacoste queria reduzir o salário de Fillol. O militar achava que ele, o maior goleiro da história do futebol argentino, ganhava dinheiro demais. Fiel ao seu estilo, Fillol não se intimidou e se recusou a assinar o novo contrato. Foi quando Lacoste mandou chamá-lo em seu escritório privado. Na presença de fuzileiros armados, ouviu o seguinte: “Se você quiser continuar jogando, é melhor aceitar o que o River te oferece. Você é um mau exemplo. As greves estão proibidas neste país.”

O arqueiro campeão do mundo saiu em silêncio, sem vergar. Continuaria recebendo os vencimentos originais, mas seguiria sendo ameaçado pelos homens de Lacoste, que chegaram inclusive a espancar seu pai numa emboscada.

Fillol diz que a intimidação a que foi submetido é fichinha diante da situação duríssima da grande maioria dos participantes daquela campanha. Além de Fillol, apenas Passarella, Kempes, Ardiles, Alonso e La Volpe seguiram ganhando um bom dinheiro e terminaram a carreira com um padrão de vida confortável. Os demais estão, em maior ou menor grau, em dificuldades.

Os governos, tanto os militares como os civis, não se dispuseram a ajudar. O caso mais triste foi o de René Loco Houseman. Atacante rebelde (daí o óbvio apelido), ele foi o rei das escapadas nos anos 1970. Fugia da concentração do Huracán para beber e voltava para jogar.

Sofreu com o alcoolismo durante décadas e só no fim da vida, quando lutava contra um câncer, recebeu algum suporte da AFA. Dono da camisa 9 na Copa de 1978 e titular no início da campanha, Loco Houseman chocou a Argentina ao ser fotografado sentado numa calçada, muito magro e debilitado, na porta do estádio do Huracán, dois meses antes de morrer, em março de 2018.

A população como um todo não nutre grande carinho pela equipe de 1978. Para muita gente, lembrar aquele Mundial é reviver o terrorismo. Fala-se até em “maldição” contra aqueles que chutaram uma bola ensanguentada e saíram campeões na Copa dos argentinos desaparecidos. Para quem brigou por aquele título, trata-se de uma ferida aberta até a morte.

“Nós arrebentamos o rabo em campo contra times muito fortes. Não merecemos isso”, lamenta o ex-atacante Bertoni, lembrando que não era “nem militar nem motonero”, citando o termo usado para classificar os participantes da guerrilha urbana.

Mas é César Luis Menotti quem faz o desabafo mais exasperado ao ser questionado sobre o tratamento concedido aos muchachos de 1978.

“É muito feio. A sociedade fez muito dano, e não só a mim. São uns infames. De qualquer forma, nada se compara com aquela Copa. O povo estava em toque de recolher e ainda assim 20 milhões foram às ruas depois do título. Isso ninguém vai tirar de nós, pois vivemos aquilo tudo.”

O impacto daquele atribulado Mundial não afetou apenas os jogadores que participaram da campanha. As circunstâncias que cercaram a Copa de 1978 também deixariam sua marca na trajetória de um novato que viria a se transformar no mais adorado craque argentino da história.

Estamos falando de Diego Armando Maradona, mas esta já é uma outra história.


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